A “Palavra Inspirada”, é um termo
brilhante que poderia responder eficazmente à pergunta: o que é Sagrada
Escritura. Conquanto, é muito mais que isso. A escolha deste livro, de Armindo
dos Santos Vaz, suscitou especial interesse porque nos fala de um modo
genérico, apesar da imensa bibliografia e conhecimento, de que a Sagrada
Escritura não é pura literatura, isto é, não é composta por palavras soltas ao
vento, à deriva no tempo e no espaço, como que inocentes no seio de um povo. Há
vida por detrás de cada palavra mencionada na Sagrada Escritura, há um autor e
locutor implícito à mensagem que é transmitida, que sendo distintos, se tornam
num só redator. Há uma relação intrinsecamente profunda em que Deus é o autor
da Sagrada Escritura por intermédio do Homem.[1]
A
Palavra é viva porque é atual face ás questões centrais da vida do homem, e
como não poderia deixar de o ser, podemos encontrar n´Ela, as experiências, os
testemunhos, as (con)vivências e esperanças, a história viva da criação da humanidade,
a relação filial entre o Pai e o Filho, Deus e Homem, e religião enquanto tal,
pois não termina como que se a última página da Bíblia se tratasse. Pelo
contrário, só termina, no bom sentido de se completar, de se consumar, com a
nossa resposta que é a própria adesão. Este é o tempo, em que num primeiro
momento, Deus se revela pela Palavra – Antigo Testamento, e num segundo
momento encarna a própria Palavra – Novo Testamento, não há melhor
clarividência e compreensão possível. A Sagrada Escritura, não é um livro de
costumes, nem um livro moralístico como se encontrássemos nele as respostas
adequadas à realidade de hoje. A Revelação é coincidente com a Palavra, pois
esta é uma revelação segunda sem perder a força em nenhum momento da primeira.[2]
A
verdade é que a Sagrada Escritura continua a ser um ponto central no seio da
Igreja que é casa de Deus, e, o melhor que tem para oferecer – o testemunho de
um povo que peregrina na fé ao Deus de Israel, a mensagem de um Deus que fala
por intermédio dos Santos Profetas – aqueles que são divinamente chamados a
pronunciar humanamente a Palavra Divina e aplicar essa Palavra à comunidade e
vida de Israel, fazendo dessa vida, uma Escritura num processo compósito, isto
é, contínuo[3].
A
Bíblia não é um livro numeroso e literalista, ou conjunto de livros como falam
os ditos sábios e racionalistas “atuais”. Em boa verdade, a Bíblia é um livro
numerosamente pequeno para descrever os acontecimentos vividos e transmitidos.
Graças a Deus, os acontecimentos são sempre maiores que as palavras; A Sagrada
Escritura não é de caris científico, caso contrário, não seria inspirado, mas
sim forjado, e aqui, é onde cerne a sua real distinção face à vasta literatura
imprudente e ás demais críticas modernas de que a Sagrada Escritura é alvo; ela
é um livro de fé e deve ser visto sempre desta perspetiva. É preciso
contextualizar “cada livro” à sua época, com todas as ferramentas inerentes à
construção do mesmo, ou seja, recursos literários, estilísticos, provérbios,
sapiência, que fizeram dele, o “livro” que é hoje. A Bíblia deve ser tomada e
compreendida, experienciada e vivida profundamente, porque corresponde ao
contexto histórico da vida de um povo, experiências de um povo que é chamado à
Salvação (Israel e Igreja apostólica). Trata de uma experiência de fé, a qual a
ciência não tem habilitação nem instrumentos para tratar, pois não se estuda
com base em dados experimentais, ou factualidades matemáticas ou arqueológicas,
quando muito podem contribuir.[4]
Está
ainda em aberto a possibilidade de estudar a Sagrada Escritura no seu sentido
pleno, sem que nos habituemos a que tudo tenha que ter uma explicação lógica e
óbvia para os factos, como que só a certeza nos deixe de inquietar. Todavia,
não podemos dizer que, por não termos visto o que aconteceu, deixe de ser
verdade. A Tradição é isto mesmo, o trazer da história vivida e transmitida,
uma história de vida de um povo, que passa da experiência à escrita, e esta,
não pode viver separada da revelação, pois é prova viva dessa mesma experiência
e dessa vida, por isso estabelecem desde sempre mútua relação.
A
Providentissimus Deus é ainda hoje, o primeiro grande documento da
Igreja sobre a Bíblia na época moderna, alertando o homem ao chamamento
sobrenatural a que é sujeito por intermédio do Espírito Santo, o qual (im)pele
e move os profetas e escritores, como os apóstolos, a redigir justamente tudo
aquilo que é necessário para o desvelamento da fé. Contudo, a constituição
dogmática Dei Verbum vem contribuir significativamente, para aquilo que
é a própria Revelação Divina na inspiração bíblica, Escritura e Tradição, ou
seja, a Palavra como Revelação, ou, a Revelação como sendo a própria Palavra
objetivamente[5].
Aqui, é inevitável não podermos falar em Yeshua Hamashiach, transliterado ao hebraico ישוע המשיח , personificação
da Palavra, não há melhor coerência dos factos que não a pessoa de Jesus, o
qual faz corresponder e coincidir o sentido da Sagrada Escritura no seu todo,
desde o Antigo à consumação do Novo Testamento[6].
A Escritura é parte integrante da fé da Igreja e deve ser venerada tal como a
Tradição que nos é transmitida integralmente sob todo um processo rigoroso, que
cabe à Patrística e à exegese o fazer.
Ora se Deus quer se revelar, não pode
enganar. A Escritura Sagrada foi e ainda continua a ser, pelos atuais sábios da
escrita moderna, alvo de critica de autoria literária sob o ponto de vista
redaccional, ora é palavra divina, ora palavra humana e graças a Santos
Teólogos, não tão distantes do nosso tempo, puderam colocar termo a essas
suspeitas que tendiam a fazer da Sagrada Escritura uma palavra meramente
humana. Em boa verdade, a discussão não passa tanto por aí, pois de facto, é
redigida pelo punho humano, todavia, essa palavra só se consegue explicar e ter
sentido, ganhando força no seu próprio contexto, ou seja, não é uma história
qualquer, sem alcance semântico e muito menos à deriva. A Palavra passa por
sucessivas etapas de vida para se tornar Escritura, é um processo compósito,
isto é, contínuo que se prolonga por vários anos e que por essa razão, não se
pode esperar que se compreenda um texto redigido do séc. IX a.C da mesma
maneira que um do séc.I d.C sob todo um ponto de vista literário. Os textos são
feitos com os conhecimentos linguísticos e modelos daquela época.
A
história do Povo era movida pelo mesmo Espírito de quem a redigia, Israel foi
ao longo desse tempo reincorporando tradições e acrescentando memórias de vida,
significa por isso, que antes de se escrever, tudo era vivido, experienciado,
acreditado e só depois escrito, esta é a força implícita da Palavra, sem olhar
a “erros”. Os acontecimentos são sempre maiores que as palavras e fazem disso
um facto absolutamente inegável, mostrando que a Bíblia, passa pela oralidade e
desta para a escrita, tornando-se história concreta numa revelação que causa no
autor uma irradiação divina, isto é, «quem O procura, O encontra…»
(Lc7,7). Mesmo sem ver a Deus, Ele se faz presente pela forma como atua, fala,
se expressa, vive e convive, objetivamente. [7]
Os
primeiros redatores, Amós e Oseias (740 a.C), Isaías (735 a.C), Miqueias,
Jeremias – que testemunha a queda do Templo, Elias e Eliseu, vão ser aqueles
que mais se vão destacar e aprumar a história de vida de Israel no Antigo
Testamento, sobretudo, aquilo que é a profecia como fenómeno para a formação,
não só como legado divino, como também formação do povo numa lógica de
atribuição, ou seja, obediência como bênção e desobediência/ esquecimento como
a punição/ perdição – pecado. Estamos a falar do principio da atribuição.
Embora
no Antigo Testamento, o Espírito Santo estivesse implicitamente contido na
escritura, apesar de não ser referido de forma explicita, foi preciso tempo
para perceber que a “linguagem de Deus” se fazia pelas palavras humanas e só
mais tarde, por volta do ano 63 a.C, é que essa “linguagem de Deus”, se revela
autêntica na pessoa de Jesus e é esta revelação que ninguém esperava – Mistério
da Encarnação, em que o Verbo se fez Carne e habitou entre nós.[8]
Jesus
é chave do Antigo Testamento, é aquele que conhece a Escritura como ninguém, é
o mesmo sobre o qual redigiu e interferiu pelo cunho humano a Sagrada
Escritura, pois é o único, não só capaz de interpretar o seu sentido pleno
(Haggadah e Halakhah), como também o qual faz recair sobre Ele, as promessas e
profecias, as maiores e as mais difíceis questões paradigmáticas da vida
enquanto tal. Ler o Antigo Testamento e ouvir Torah por Jesus, é praticamente
ouvir, em primeira mão, o autor, é Deus que fala.
Portanto,
há interferência do mesmo Espírito que é o mesmo Deus e Senhor, o autor por
detrás da intenção de cada compositor literário – hagiógrafo; É com a sucessão
apostólica que os textos vão ganhar nova dimensão em torno da vida de Jesus, em
que por um lado, era o Ungido, o Messias, Aquele que estava para vir desde o
Antigo Testamento, e por outro lado, na mesma perspetiva da fé, aquele que
ressuscitando ao terceiro dia, proporciona continuidade no crente, de escrever
todos os acontecimentos que acharam importantes para a revelação e continuidade
dessa mesma fé – Novo Testamento. Estamos perante factos que a ciência não ousa
negar, não só a historicidade de Jesus de Nazaré concretamente, como também,
não pode interferir num contexto histórico-critico porque a experiência de fé
de um povo, não é uma experiência de dados científicos, objetivamente. A
natureza da Inspiração Bíblica é, em boa parte, a própria revelação divina, a
qual permite a comunicação entre Deus e o homem, fazendo dessa mesma
comunicação uma transmissão e linguagem simbólica ao ponto de fazermos da nossa
vida, da nossa experiência de fé, uma vida partilhada já com Deus[9].
O importante é o Querigma, como dizia Bultmann, e muito tempo perderam, em
tentar fazer da escritura uma cientificidade de que a fé era infalível ao ponto
de não haver contradição ou possibilidade de erro.
A
Palavra de Deus tem caracter religioso e não científico, porque corresponde a
cada período e tempos de vida da comunidade, cria esta comunhão única que pela
linguagem humana fica iluminada pelo mesmo espírito de quem redige, portanto, a
fé não se mede aos palmos propriamente. Passar da Oralidade à Escritura,
confere fidelidade dos acontecimentos vividos e também viabilidade da própria
textualidade para que a vida, na esperança e na fé, continue a dar fruto
naquilo que é, a experiência de um povo que caminha para Deus, isto é, Deus não
abandona e torna-se mais presente e próximo que aquilo que possamos imaginar
por ação do Espírito[10].
Já
no segundo capítulo, o autor aborda e trata as questões relacionadas com a
veracidade da Palavra, sobretudo quanto ás consequências ou efeitos e à
inerrância, ou seja, quanto à canonicidade dos textos como sendo aqueles e não
outros, a verdadeira Palavra de Deus não no sentido científico, mas no sentido
que continua a gerar vida no leitor[11].
Ora
se a Palavra de Deus, é um processo contínuo, que vai educando o povo na fé,
que vai preparando a sua vinda, que vai paulatinamente atuando na vida concreta
do povo e em particular, não é estático, é dinâmica, vai desenrolando até ao
ponto de fazer sentido à compreensão humana, a Sua realização plena, ou seja, manifestada
concretamente em Jesus - o próprio Deus em pessoa. De facto, poucos o viram,
exemplo dos discípulos de Emaús, que só à luz da fé, é que foi possível o ver-a-Deus.[12]
Por isso, a Bíblia é um livro, percorrido muitíssimas vezes por caminhos
sinuosos em que, mesmo na hostilidade, fala a verdade e a verdade é Deus,
revelado em pessoa. A Sagrada Escritura não deixa de ser uma história,
entendida não como um “corpus”
composto com principio meio e fim, isto é, como se fosse pensado ou projetado
cuidadosamente, mas redigida e interpretada teologicamente, que procura dar
lugar aos acontecimentos, fazendo conectar e cruzar essa mesma história, à luz
dos acontecimentos e ao contexto em que Deus fala e se revela. Como história, é
a da humanidade em concreto, todavia, a Bíblia é um testemunho de fé, o plano
de salvação que Deus tem para o Homem, isenta de erro, objetivamente[13].
Os
métodos de interpretação da Bíblia continuam a ser, essencialmente, os da
patrística: o sentido literal – o que aconteceu; alegórico – o que está por
detrás da letra; sentido moral – o que devemos fazer; anagógico – escatologia,
fim último.
“O
termo Jerusalém é muito usado para explicar estes quatro sentidos bíblicos
medievais: em sentido literal, indica a cidade histórica de Jerusalém; em
sentido alegórico, indica a Igreja; em sentido moral, indica a minha ligação
com Deus, e em sentido anagógico, significa a Jerusalém celeste (Ap21-22).”[14]
A Palavra de Deus, suscita no crente uma
interpretação pessoal acima de tudo, mas torna-se penetrante porque nos coloca
frente à nossa própria essência e causa, eu diria no limite, ontológica, isto
é, a própria essência do nosso Ser, um verdadeiro “Ser-se” de Deus, pois de
outro modo não se entenderia este convite à comunhão eterna com o Criador;
coloca-nos diante da revelação e não há outra hipótese senão deixar a alma
falar com Deus e sermos nós mesmos o Seu instrumento, isto é, torna-se
efetivamente um diálogo e o modo privilegiado de Deus se fazer presente na vida
pessoal e comunitária[15].
O modo de Deus atuar, é realmente libertador e por isso, põe término à inércia
e à distância daquilo que é a relação Homem-Deus, por intermédio da Pessoa de
Jesus de Nazaré, aquele que fala em nome de Deus, é o próprio a “vestir” a pele
humana, aquele que depois de falar, cria a missão daqueles que o querem seguir,
a verdadeira intenção de não conseguirem conter a fim de que fique registado
pela escrita, que é por excelência, o registo da Sua atividade – a Sagrada
Escritura[16].
Para
terminar, o autor fala-nos e muito bem, a Palavra de Deus alcança toda a
dimensão humana, fazendo dela a sua própria estrutura, isto, é o seu modo de
falar, «Eu lhes
fiz conhecer o teu nome, e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me
tens amado esteja neles, e eu neles esteja»
(Jo 17,26), o mesmo se diz no Antigo Testamento: «A Palavra que sai da minha boca não voltará a mim vazia, mas fará a
minha vontade, cumprirá a sua missão» (Is 55,11;45,23)[17]
[1] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.17-18.
[2] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.18-19.
[3] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.21-22.
[4] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.30-31.
[5] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.31.
[6] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.39.
[7] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.39-40.
[8] Cf Jo1,14; VAZ, Armindo – Palavra
Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.43.
[9] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.45-48.
[10] Cf Ex4,12; Mt10,20; Lc12,12; VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho.
2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.49-54.
[11] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.58-65
[12] Cf. Lc21,13-35
[13] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.69-71.
[14] ALVES Herculano, Documentos da Igreja sobre a Bíblia, p43
[15] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.74-75.
[16] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.77-79.
[17] VAZ, Armindo – Palavra Viva,
Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa:
Universidade Católica, 2020, cap.1, p.99-101.