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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos; de Leonardo Boff

 

O Autor começa por introduzir o homem numa dinâmica que o supera e que aponta a uma realidade invisível, deixando-o em alerta sobre o modo como o desperta para essa realidade. Foi de facto explicado que o mistério, na sua etimologia, «mystérion», significa guardar segredo, levar a mão à boca diante de algo que nos é manifestado de forma surpreendente, e que não dominamos. No contexto religioso está aplicado e apropriado ao culto, e de certa forma ligado também ao termo «sacramentum», ou seja, a participação do ser humano em rituais que nos remetem para a ação divina tem a ver com realidades, segundo as quais o termo adquire significado novo: anúncio profético de uma ação/evento futuro, prevista por Deus.

            O Sacramento é a combinação inseparável entre o gesto e a Palavra, pois o próprio gesto já fala por si mesmo. As coisas de Deus só se compreendem a partir de dentro; assim, os sacramentos só se percebem quando entramos no seu sentido profundo, isto é, nos mistérios de Deus, e diante da Sua plenitude.

            Numa breve introdução ao livro, o autor pretende sensibilizar o homem para que este possa decifrar e descrever o fenómeno sacramental de olhos atentos e espírito aberto a uma realidade sensível. Já dizia Stº. Agostinho que os Sacramentos são como sinais, realidades através dos quais Deus comunica e nos possibilita à comunhão fraterna, que nos transportam para outra realidade. No fundo, é o modo privilegiado de Deus comunicar, através das suas ações explicitas em Jesus; Sacramento é o sinal sagrado de uma realidade espiritual, de uma realidade invisível; por um lado, há um elemento divino, mais ligado ao sensível, e por outro ao espiritual, ao invisível. Uma coisa é o que se vê, outra é o que não se vê, mas está como que contida como sinal, é o conteúdo da própria fé.

            Encerrando o primeiro capítulo, destaco que, para o autor, a linguagem do sacramento prende-se em três sentidos: não apenas descreve o acontecimento, como também evoca narrando esse acontecimento, contando o milagre, interpelando a pessoa e, por fim, essa linguagem tem carácter performativo, ou seja, capacidade de gerar efeito na vida pessoal, mas também comunitária; a eficácia do Sacramento visa a transformação da própria realidade.

            Já no segundo capitulo, a ideia principal que retiro do texto e do autor, é o próprio significado de Sacramento, mas num contexto como ele fala - Sacramento da caneca, que é exemplo excelente para dizer simplesmente que um objeto pode ser visto por dentro, pelo significado que tem de si e para os outros, sobretudo, no modo como ainda consegue gerar efeito, tornando-se assim significante. No fundo, a caneca fala da história da família que ela sempre acompanhou, na vida e na morte; ela foi entrando cada vez mais na família, isto é, tornou-se um sacramento familiar. Lembro-me, nas aulas, de falarmos de um exemplo parecidíssimo com este – a água: como banho, como lugar da união daquilo que é natureza humana e divina, e lugar onde realiza o pacto de aliança, esse vínculo insolúvel de união esponsal da alma e o criador; tudo acontece e é visto entre a união amorosa de vinculação para sempre. A água assume desde logo outros traços vistos desta forma. Leonardo Boff alerta que o modo de olhar a realidade atualmente, pelo homem moderno, não é necessariamente mau; o importante é abrir-se ao sentido mais profundo, deixando de ser um mero objeto, e passando a ser um símbolo, um sinal que me interpela, que me evoca ao seu verdadeiro significado, ao seu próprio mistério.

            No terceiro capitulo, O Sacramento no Toco de Cigarro, «tudo é sacramento ou pode tornar-se»[1]: como se torna belo que, mesmo a partir de um cigarro, aquilo que se denota como um vicio mundano, de repente tem outro significado por trazer à memória um ente tão querido como o seu pai. Ressalvo mais ainda, que não é meramente o cigarro que é importante, mas o cheiro, o odor que faz lembrar; um pouco como o incenso, também um representante essencial dos rituais litúrgicos. Com efeito, «O Senhor disse a Moisés: “toma aromas: resina, casca odorífera, gálbano, aromas e incenso puro em partes iguais…” (Ex 30,34) Ou seja, invoca-se uma outra realidade, deixa de ser um simples cigarro para se tornar sinal ou símbolo para alguém. O Sacramento é também isto, fazer vir ao de cima o próprio valor da coisa em si, que cria e recria simbolicamente um valor tornando-se sacramental.

            «O Pão lembra algo que não é Pão»[2]; o Sacramento insere dentro de si uma experiência total. De facto, foi o capítulo que achei mais belo por analogia à Eucaristia, o pão que se reparte, e que é Corpo de Cristo. O Sacramento é um símbolo, algo que transparece, participa de dois mundos, a saber, do transcendente (Deus) e do imanente, que se torna presente em si mesmo, uma realidade concreta na vida do homem. O próprio Sacramento dá sentido especial às coisas que parecem vulgares, isto é, um símbolo que liga a realidade humana, com a realidade superior; que liga o homem, na sua imanência, a Deus, na sua transcendência. Para Leonardo Boff, a transparência só se entende fazendo parte de um todo que é a imanência e a transcendência.

            No capítulo que se segue, o autor fala com ímpeto sobre o propósito humano, dizendo que também é o maior sacramento de Deus, e só ganha sentido em pleno se vivermos desta forma, para Deus. Aliás, o autor avança mais ainda, dizendo que, se tudo for visto em perspetiva sob um olhar atento da realidade em Deus, tudo quanto existe é sacramento de Deus, a criação é obra divina. O Sacramento da Vela Natalina mais não é que falar no Natal, e este não se preenche de luzinhas espalhadas pelo mundo, mas antes com a única luz que veio ao mundo assegurar que fôssemos iluminados pela sua vontade e inteligência. A ser assim, o Sacramento possui duas funções, a indicadora e a reveladora: a indicadora, como o nome o sugere, mostra Deus presente nele (no Sacramento), no objeto; já numa função reveladora, o Sacramento revela, comunica, expressa Deus presente. O verdadeiro sentido do Natal é a luz que veio ao mundo, a única que deixa as trevas estremecidas e sem resposta possível, é tanto quanto o conhecimento no meio da ignorância, tanto quanto a verdade no meio do erro.

            No sexto capitulo, o autor fala sobre o percurso da sua vida histórica, e alerta-nos que o passado é parte da vida que se encontra no presente e que dá forças para o futuro; em bom rigor, o passado assume um caráter sacramental, na medida em que se vê a “mão de Deus” nas nossas vidas. O fato de alguém levantar a mão, quando se perguntava quem queria ser padre, muito embora nunca lhe tivesse passado pela cabeça, no seu coração, nada mais de correspondente, verdadeiro e autêntico lhe passara naquele momento, até que esse momento chega sem contar e, enfim, entra no seminário. O intuito do autor é este: tudo avança para que a obra de Deus se realize, e mesmo na hostilidade das nossas vidas, Deus continua a realizar a Sua obra, desde o inicio da humanidade.

            O capítulo que se segue, O Sacramento do Professor Primário, é o capítulo da teologia: o autor fala num senhor professor chamado Mansueto, um idealista, formado em humanidades, bastante culto e dedicado ao ensino. Segundo Leonardo Boff, quando fala em Jesus de Nazaré, fala do professor por excelência, o único que falava como ninguém sobre as verdades divinas, o verdadeiro intérprete da Sagrada Escritura, aquele que faz a haggadah e halakhah. Com efeito, Jesus é o sacramento do encontro por excelência: não só levou uma vida nas bem-aventuranças, como se expressou fielmente com a sua vida a Deus e se entregou num ato filial de Filho ao Pai. N´Ele está presente a forma divina, ou seja, em Jesus se dá a condescendência de Deus, na qual se vê expressamente o ato de entrega por amor, criando no coração do homem a missão discipuladora de que só quem sabe amar, sabe reconhecer no irmão, Jesus em pessoa, Deus enquanto tal.

            No capitulo oitavo, aparece o Sacramento da Casa, que no fundo nos fala dela como um lugar sacramental no que nele contém, isto é, “a porção do mundo que se tornou sacramental, doméstica, humana, onde cada coisa tem o seu lugar e sentido, onde não há nada de estranho”[3], a casa de Deus, a Santa Igreja. No fundo, o que o autor pretende dizer é que a Igreja se torna Sacramento quando vivemos o que ela de melhor oferece, a pessoa de Jesus Cristo, e neste sentido ela é sacramental; torna-se habitável e familiar na medida que congrega todos os homens sem exceção. De seguida, e sem perder o fio condutor deste tema sobre a Casa que é a Igreja, o autor chama a atenção para o ponto central dentro da mesma – a própria comunhão tem a sua teologia: ninguém se sacia sozinho; a fome desaparece porque se comunga em comunidade. Esta era a forma de Jesus amar – sentar-se à mesa com os seus, celebrar ardentemente a Páscoa, entregando-se por todos nós como vítima de expiação dos nossos pecados, estamos perante a Eucaristia.

No nono capitulo, Os Eixos Sacramentais da Vida, Leonard Boff fala dos sete Sacramentos, a saber: a) Batismo – aquele que consagra o verdadeiro nascimento de um Cristão; é por ele que somos purificados do pecado original, e nos tornamos parte da Igreja e do Corpo de Cristo; b) Eucaristia – banquete como participação na própria vida divina; trata-se da última ceia em que Cristo comeu com os seus discípulos na véspera da sua Paixão, e através da qual nos une a Deus Pai; c) Matrimónio – ícone do amor de Deus por nós; Deus criou por amor, do mesmo modo que chama por amor; d) Unção dos enfermos – expressa o poder salvífico de Deus; e) Penitência – articula a experiência do perdão e o encontro do filho com o pai; f) Ordem – consagra as pessoas para o serviço da reconciliação.

            Em que sentido Jesus Cristo é o Autor dos Sacramentos? Entramos assim no décimo capítulo, no qual o autor começa por fazer referência ao Concílio de Trento, o qual afirma que os sete sacramentos foram instituídos por Cristo, e por eles estão atendidas todas as necessidades da vida de um cristão. Todavia, têm também finalidade instrutiva: não só supõem a fé, como também a fortalecem, a alimentam e a expressam por palavras e ações. Estas ações são também denominadas de Sacramentos, pois neles está a própria ação de Jesus, que era o modo privilegiado de ele ser para com o povo; ou seja, é assim que ele se dá a conhecer, e deixa a marca de salvação na pessoa, dá tempo para que esta se aperceba da presença salvífica de Deus.

            Já no décimo primeiro capitulo, gosto particularmente da expressão ex opere operato, ou seja, em virtude do próprio rito realizado, a presença da graça divina no Sacramento não depende da santidade de quem administra o próprio Sacramento, sobretudo quando não é feito no seu devido sentido, isto é, na evocação do Senhor, que deriva da obra realizada por Cristo no seu corpo. Os Sacramentos só são realmente eficazes quando o sinal sacramental é validamente realizado não pela parte do recetor, mas pelo poder e promessa de Deus.

            No décimo segundo capítulo, o autor diz que o Sacramento exige também uma resposta à proposta de Deus; não é inócuo e sem destinatário, espera-se uma atitude. Por conseguinte, é uma atitude que não só confronta a pessoa com o seu todo, como também a transforma, a converte e a interpela para os desígnios de Deus. Esta era uma das finalidades do Concilio de Trento, que apesar de tardio e adiado muitas vezes, foi realizado para marcar uma posição: uma atitude humilde do homem, não só para combater as heresias provocadas pelo protestantismo, mas para se colocar diante de Deus de forma modelar; mais ainda, exige compromisso, engajamento, que era o que significava «Sacramentum» nas primeiras comunidades cristãs.

            Para terminar, nos dois últimos capítulos, é assegurado que o Sacramento procura mais unir que contrapor, procura mais recordar que esquecer, procura tornar-se presente na vida do crente, preparando-o para o futuro. No entanto, há que haver cuidado na forma como o vivemos para não cairmos em “sacramentalismos” (isto é, buscá-lo sem o propósito da conversão), pois só assim se vive o Sacramento e ele se torna eficaz. Os sacramentos remontam a uma memória, celebram uma presença no aqui e agora e, sobretudo, antecipam o futuro no presente. Segundo A Sacramentologia em Proposições Sintéticas, é importante ressalvar que, para entender o Sacramento no sentido pleno, isso apenas é possível no horizonte da fé, no encontro pessoal com Deus, através dos objetos, rituais, gestos e palavras.

 



[1] BOFF, Leonardo; «Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos» as dimensões da sacramentalidade, pp24

[2] BOFF, Leonardo; «Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos» Imanência, Transcendência, Transparência pp29

 

[3] BOFF, Leonardo; «Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos» capítulo VIII, Sacramento da casa, pp48