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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Exortação Apostólica : Gaudete et Exsultate

Na primeira parte deste documento, o Santo Padre fala-nos da Santidade como um processo que é possível vivê-lo aqui e agora em comunhão com todos os irmãos. Parece existir, para Francisco, uma inefável confiança de que, no exemplo dos santos Mártires, se torna presente cada vez mais o próprio Deus que se manifestou e revelou na pessoa de Jesus Cristo. 

Repare-se nas ações da vida de Jesus, uma entrega filial não só a Deus, mas aos homens, à semelhança da entrega que Deus faz de si mesmo a todos nós no próprio filho; eu diria, no limite, que Jesus é exemplo de Martírio, numa entrega sem reservas por amor ao Pai, e que nos abre a derradeira possibilidade de sermos santos como ele o é: «Sede Santos, porque Eu sou santo» (cf.1 Ped 1,16). Nós não podemos simplesmente separar da santidade o modelo pelo qual nos fazemos santos, que é Jesus; que por Ele se abre a única via para a salvação, para a comunhão eterna com o criador. 

O modo como Deus atua na vida de cada um é exclusivo e especial; isto é, não importa qual o caminho que percorrermos até que nos apercebemos do “dedo de Deus” na nossa vida, o importante é reconhecer e saber ler os sinais. De facto, está presente e bem visível que cada ação que tenhamos com o próximo tem implicações diretas na nossa vida pelo seu próprio testemunho de fé. Não é necessariamente desolador o modo como se entrega uma vida, mas antes, especial e autêntico o modo como a vivemos. Note-se um aspeto particular que deixa muito convicto que é extremamente importante: tem a ver com o género feminino, pois a santidade já começa na mulher, pelo sim de Maria. O “Fiat” consagra e abre o mundo à salvação. Ser-se santo prende-se essencialmente com o modo como vivemos, independentemente daquilo que fazemos, sobretudo pelo que somos em comunhão com o próximo, com o irmão, com toda a Igreja que é Corpo de Cristo. 

A medida doamor é esta: «dai e dar-se-vos-á» (Mt 7,7), e é nesta proporção, nesta entrega, que não só nos descobrimos no amor ao próximo, como também vemos que o caminho para a santidade acontece e vale para cada contexto, ou seja, mesmo perante as hostilidades de cada um, Deus continua a Sua obra e escreve direito na tortuosidade das nossas vidas. Perante as dificuldades, aquela que é Theotokos, ensina os filhos, apontando e dirigindo-se ao Filho: «fazei o que Ele vos disser» (Jo 2,5); o importante é agir independentemente do contexto da nossa vida, nunca esquecendo que, apesar de pecadores, Deus não Se cansa de nos chamar à comunhão com Ele, isto é, à Santidade. Um aspeto que não posso deixar passar em branco, e que muito chamou a minha atenção, é o facto de o Santo Padre tocar num ponto em que muitos reparam e poucos refletem profundamente sobre eles: a nossa atividade pode e deve ser santificadora, isto é, as nossas ações têm um sentido, para nós e para os outros. Se aquilo que fizermos for tomado como evangelização, pode ser já considerado um verdadeiro caminho para a Santidade. No meu contexto hospitalar, quantos não são os doentes que precisam de apoio direto, de uma palavra amiga, de um conforto que há muito não têm, de uma palavra de fé e ânimo? De uma palavra do próprio Jesus? No próprio facto de verem que quem cuida deles pode ser um irmão? E quantos não são os profissionais, que caem na rotina de fazer o que têm de fazer porque o trabalho o obriga? Cada contexto vale e deve contar para a santidade. Esta insatisfação de quem não sabe para que vive, deixa à deriva o propósito da vida de cada um, que tende a compensar esse vazio com aquilo que não é vital, fazendo da vida uma mera passagem em que aquilo que é importante, é aproveitar cada momento como se não houvesse amanhã. Servir significa muito mais que prestar auxílio, tanto quanto escutar significa muito mais que ouvir; implica um discernimento, implica um retiro também espiritual, e é no silêncio que Deus fala. Acolher e cuidar das fragilidades do próximo, significa passar pela pele do outro que necessita de ajuda e, neste sentido, fazer parte da história viva e da memória da pessoa. É um exemplo do Cristianismo. 

Numa segunda parte, o documento do Santo Padre alerta-nos para o Gnosticismo e Pelagianismo, que muito embora sejam doutrinas já dos primeiros séculos a par do Cristianismo, podem facilmente encontrar-se na atualidade. No que entre elas há de semelhança, temos a razão não só fechada em si mesma, como também ilimitada como explicação para tudo, sendo que a Teologia e a Santidade são dados formais, dispensando o Homem da Graça de Deus para sua salvação. Como é óbvio, e como tudo na vida humana é insuficiente, a experiência é sempre maior que a razão, e impossível de ser concebida na totalidade; dito de outra maneira, graças a Deus os acontecimentos são sempre maiores que a descrição possível sobre eles, logo, toda a experiência do esforço da razão, não é suficiente para falar de verdades reveladas. Deus mostra-se na sua bondade, tira o véu e volta a colocar, põe o homem na iminência do desvelamento da fé e na reticência do mistério.

No fundo, o que o Santo Padre nos convida a refletir, é que a Santidade não é um dado humano ou um dado adquirido pela mão humana, mas é Graça – ato de amor incondicional de Deus, que faz de nós seus filhos por intermédio de Jesus Cristo. O olhar alheio ao próximo pode afastar aquele que mais necessita, e neste sentido, a atitude de indiferença pode tornar-se um sério vírus; o importante é olhar com olhos humanos a própria pessoa, no próprio valor do seu ser. Esta é a condição da Santidade, não só dos valores enquanto pessoas, mas também da própria pessoa em si, dentro de um quadro daquilo que é SER humano. Se o olharmos a partir da sua essência, visto antes como um todo na parte ou a parte no todo, o homem é criação divina, e permanentemente chamado à Santidade, isto é, à comunhão com Deus. Já na terceira parte da exortação apostólica, ressalto a expressão «Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5-3): significa que, a exemplo de Cristo que era rico e se fez pobre, que é Deus e se fez homem, que viveu e experimentou a dor humana, vem mostrar que a santidade não é algo terreno e muito menos material, mas espiritual e quanto mais no espírito vivermos, mais perto estamos da Santidade, isto é, antítese da realidade mundana. Ter um coração puro e aberto a Deus, leva a criar uma sociedade mais cordial, ou seja, mais dada ao próximo, o que pressupõe o outro na mesma medida e proporção que nós próprios (Cf Mt 23,8). A medida do amor é dar-se livremente, e quanto mais nos damos mais nos conhecemos, mais damos conta que o amor não só é dom-de-Deus, como também é no amor que Deus nos chama, fala, e o maior exemplo desse amor é a pessoa de Jesus, que se expressou fielmente com a sua vida a Deus e se entregou num ato filial de Filho ao Pai.

«Felizes os mansos, porque possuirão a terra» (Mt 5,5) 

«Felizes os que choram, porque serão consolados» (Mt 5,4) 

«Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5,6) 

«Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5,7)

«Felizes os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5,8) 

«Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 5,9)

«Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu» (Mt 5,19)

As Bem-Aventuranças que se encontram bem patentes neste documento pontifício, mais não são que o exemplo vivo da vida concreta e terrena de Jesus, e o convite que nos faz, «Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me» (Mt 16,24). Esta é a proposta: Ser feliz e Bem-aventurado é o caminho para a Santidade, como o foi Jesus, o Santo, o Mestre e exemplo, não só na atitude segundo a qual levou e encarou a Sua vida, como mostrou, assim, a cada um de nós, que são estas as atitudes que mais agradam a Deus, «Portanto, sede perfeitos, assim como o vosso Pai é perfeito.» (Mt 5,48), ou seja, ser santo é levar uma vida dedicada a Deus e ao próximo. Cada vez mais me convenço que o Cristianismo é uma religião dada ao amor ao próximo, de abertura ao diálogo entre religiões, ao acolhimento, sobretudo para pôr em prática todos os seus preceitos, isto é, à imagem viva de Jesus, que faz de si e no próximo, o verdadeiro irmão em Cristo. A santidade é mais presente e visível quanto mais cultivarmos esse amor; não é algo longínquo e que só seja possível no céu: afinal, Jesus é filho de Deus e viveu connosco aqui na terra, e continua a difundir no coração de quem o ama e segue, o desejo de Deus: «amai-vos uns aos outros, como eu vos amei» (Jo 15,12). A missão de Jesus é salvar, criando no coração do homem a missão discipuladora de que só quem sabe amar, sabe reconhecer no irmão, Jesus em pessoa, Deus enquanto tal. 

Na quarta parte desta Exortação Apostólica, o Santo Padre alerta para a cultura de hoje, a qual faz grande distinção entre aqueles que se consideram superiores e os “outros”, inferiores. A imagem ridicularizadora que é passada dos mais desfavorecidos nem sempre deve ser vista de maneira negativista, ou seja, a humilhação em sentido estrito e em bom rigor, significa o despojar da nossa pessoa, e isso faz com que seja notório a nossa condição humana: «porque és pó, e pó te hás-de tornar» (Gn 3,19). Quero com isto dizer que Cristo foi humilhado na Cruz; todavia, aquela humilhação só veio dizer o quão superior Ele é. Deus não quer que se tenha pena, mas naquele ato, Ele quer pôr término a qualquer atitude de desprezo, e não se valeu da condição divina; não admira, portanto, que os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos. Quanto mais humilhados formos, mais unidos a Deus estamos, pois, o único juízo de valor que realmente importa é d´Ele. A justiça humana é temporária e muitas vezes convencional; a justiça de Deus é definitiva, é a que marca e a que salva verdadeiramente.

O importante é esperar em júbilo e alegria em Deus, pois não nos abandona, independentemente das circunstâncias; lembremos o exemplo de alguns santos: implica uma atitude de perseverança e de fé que nos sustenta face às realidades mundanas, muitas vezes manchadas pelo egoísmo, egocentrismos, vaidades, superficialidades, enfim, pelo ódio. A alegria do Cristão é e deve ser de tal ordem que nada o abale, pois se o Senhor for o centro da sua vida, não há pecado que resista; ou seja, uma alegria que brota do fundo do coração daquele que vive na fé, não abre espaço nem aceita viver longe daquela condição que o faz dizer «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu Rei vem a ti; Ele é justo e vitorioso» (Zac 9, 9). Há que ser ousado, há que não temer, há que acolher a palavra de Deus e vivê-la nos contextos das nossas vidas; afinal, é assim que Deus chama e nos chama a ser santos no que fazemos. É em Igreja, em comunhão eclesial, que vivemos e partilhamos a Santidade, e o exemplo dos Santos Mártires continua a gerar fruto nas nossas vidas, quanto mais não seja, na experiência da fé, aquela que só numa atitude orante, numa atitude de comunicação com Deus, é possível alcançar. Para terminar, o Santo Padre alerta-nos para a luta, vigilância e discernimento, o que no fundo significa mantermo-nos fiéis ao Mestre e firmes na fé, pois o mal anda à espreita e é real; o demónio, como refere o Santo Padre, não é um mito – ele atua sem que nos apercebamos do mal que possa causar. É impossível não recordar que, no Jardim das Oliveiras, Jesus pede aos discípulos: «Vigiai e orai para que não entreis em tentação» (Mt 26,41). Com efeito, é necessário meditar sobre os sacramentos, nomeadamente a participação na Eucaristia – banquete de Deus, a derradeira comunhão com Deus, que se dá por todos nós como sacrifício do seu corpo e sangue para a redenção da humanidade; igualmente, praticar as obras de caridade, estar próximo de quem é mais vulnerável, enfim, um sair de nós mesmos para o outro, um ser-se santo com a força, desejo e exemplo de Cristo.