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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

“A Palavra Inspirada” Natureza da Inspiração Bíblica e Propriedades Inerentes à Palavra Inspirada

A “Palavra Inspirada”, é um termo brilhante que poderia responder eficazmente à pergunta: o que é Sagrada Escritura. Conquanto, é muito mais que isso. A escolha deste livro, de Armindo dos Santos Vaz, suscitou especial interesse porque nos fala de um modo genérico, apesar da imensa bibliografia e conhecimento, de que a Sagrada Escritura não é pura literatura, isto é, não é composta por palavras soltas ao vento, à deriva no tempo e no espaço, como que inocentes no seio de um povo. Há vida por detrás de cada palavra mencionada na Sagrada Escritura, há um autor e locutor implícito à mensagem que é transmitida, que sendo distintos, se tornam num só redator. Há uma relação intrinsecamente profunda em que Deus é o autor da Sagrada Escritura por intermédio do Homem.[1]

            A Palavra é viva porque é atual face ás questões centrais da vida do homem, e como não poderia deixar de o ser, podemos encontrar n´Ela, as experiências, os testemunhos, as (con)vivências e esperanças, a história viva da criação da humanidade, a relação filial entre o Pai e o Filho, Deus e Homem, e religião enquanto tal, pois não termina como que se a última página da Bíblia se tratasse. Pelo contrário, só termina, no bom sentido de se completar, de se consumar, com a nossa resposta que é a própria adesão. Este é o tempo, em que num primeiro momento, Deus se revela pela Palavra – Antigo Testamento, e num segundo momento encarna a própria Palavra – Novo Testamento, não há melhor clarividência e compreensão possível. A Sagrada Escritura, não é um livro de costumes, nem um livro moralístico como se encontrássemos nele as respostas adequadas à realidade de hoje. A Revelação é coincidente com a Palavra, pois esta é uma revelação segunda sem perder a força em nenhum momento da primeira.[2]

            A verdade é que a Sagrada Escritura continua a ser um ponto central no seio da Igreja que é casa de Deus, e, o melhor que tem para oferecer – o testemunho de um povo que peregrina na fé ao Deus de Israel, a mensagem de um Deus que fala por intermédio dos Santos Profetas – aqueles que são divinamente chamados a pronunciar humanamente a Palavra Divina e aplicar essa Palavra à comunidade e vida de Israel, fazendo dessa vida, uma Escritura num processo compósito, isto é, contínuo[3].

            A Bíblia não é um livro numeroso e literalista, ou conjunto de livros como falam os ditos sábios e racionalistas “atuais”. Em boa verdade, a Bíblia é um livro numerosamente pequeno para descrever os acontecimentos vividos e transmitidos. Graças a Deus, os acontecimentos são sempre maiores que as palavras; A Sagrada Escritura não é de caris científico, caso contrário, não seria inspirado, mas sim forjado, e aqui, é onde cerne a sua real distinção face à vasta literatura imprudente e ás demais críticas modernas de que a Sagrada Escritura é alvo; ela é um livro de fé e deve ser visto sempre desta perspetiva. É preciso contextualizar “cada livro” à sua época, com todas as ferramentas inerentes à construção do mesmo, ou seja, recursos literários, estilísticos, provérbios, sapiência, que fizeram dele, o “livro” que é hoje. A Bíblia deve ser tomada e compreendida, experienciada e vivida profundamente, porque corresponde ao contexto histórico da vida de um povo, experiências de um povo que é chamado à Salvação (Israel e Igreja apostólica). Trata de uma experiência de fé, a qual a ciência não tem habilitação nem instrumentos para tratar, pois não se estuda com base em dados experimentais, ou factualidades matemáticas ou arqueológicas, quando muito podem contribuir.[4]

            Está ainda em aberto a possibilidade de estudar a Sagrada Escritura no seu sentido pleno, sem que nos habituemos a que tudo tenha que ter uma explicação lógica e óbvia para os factos, como que só a certeza nos deixe de inquietar. Todavia, não podemos dizer que, por não termos visto o que aconteceu, deixe de ser verdade. A Tradição é isto mesmo, o trazer da história vivida e transmitida, uma história de vida de um povo, que passa da experiência à escrita, e esta, não pode viver separada da revelação, pois é prova viva dessa mesma experiência e dessa vida, por isso estabelecem desde sempre mútua relação.

            A Providentissimus Deus é ainda hoje, o primeiro grande documento da Igreja sobre a Bíblia na época moderna, alertando o homem ao chamamento sobrenatural a que é sujeito por intermédio do Espírito Santo, o qual (im)pele e move os profetas e escritores, como os apóstolos, a redigir justamente tudo aquilo que é necessário para o desvelamento da fé. Contudo, a constituição dogmática Dei Verbum vem contribuir significativamente, para aquilo que é a própria Revelação Divina na inspiração bíblica, Escritura e Tradição, ou seja, a Palavra como Revelação, ou, a Revelação como sendo a própria Palavra objetivamente[5]. Aqui, é inevitável não podermos falar em Yeshua Hamashiach, transliterado ao hebraico ישוע המשיח , personificação da Palavra, não há melhor coerência dos factos que não a pessoa de Jesus, o qual faz corresponder e coincidir o sentido da Sagrada Escritura no seu todo, desde o Antigo à consumação do Novo Testamento[6]. A Escritura é parte integrante da fé da Igreja e deve ser venerada tal como a Tradição que nos é transmitida integralmente sob todo um processo rigoroso, que cabe à Patrística e à exegese o fazer.

            Ora se Deus quer se revelar, não pode enganar. A Escritura Sagrada foi e ainda continua a ser, pelos atuais sábios da escrita moderna, alvo de critica de autoria literária sob o ponto de vista redaccional, ora é palavra divina, ora palavra humana e graças a Santos Teólogos, não tão distantes do nosso tempo, puderam colocar termo a essas suspeitas que tendiam a fazer da Sagrada Escritura uma palavra meramente humana. Em boa verdade, a discussão não passa tanto por aí, pois de facto, é redigida pelo punho humano, todavia, essa palavra só se consegue explicar e ter sentido, ganhando força no seu próprio contexto, ou seja, não é uma história qualquer, sem alcance semântico e muito menos à deriva. A Palavra passa por sucessivas etapas de vida para se tornar Escritura, é um processo compósito, isto é, contínuo que se prolonga por vários anos e que por essa razão, não se pode esperar que se compreenda um texto redigido do séc. IX a.C da mesma maneira que um do séc.I d.C sob todo um ponto de vista literário. Os textos são feitos com os conhecimentos linguísticos e modelos daquela época.

            A história do Povo era movida pelo mesmo Espírito de quem a redigia, Israel foi ao longo desse tempo reincorporando tradições e acrescentando memórias de vida, significa por isso, que antes de se escrever, tudo era vivido, experienciado, acreditado e só depois escrito, esta é a força implícita da Palavra, sem olhar a “erros”. Os acontecimentos são sempre maiores que as palavras e fazem disso um facto absolutamente inegável, mostrando que a Bíblia, passa pela oralidade e desta para a escrita, tornando-se história concreta numa revelação que causa no autor uma irradiação divina, isto é, «quem O procura, O encontra…» (Lc7,7). Mesmo sem ver a Deus, Ele se faz presente pela forma como atua, fala, se expressa, vive e convive, objetivamente. [7]

            Os primeiros redatores, Amós e Oseias (740 a.C), Isaías (735 a.C), Miqueias, Jeremias – que testemunha a queda do Templo, Elias e Eliseu, vão ser aqueles que mais se vão destacar e aprumar a história de vida de Israel no Antigo Testamento, sobretudo, aquilo que é a profecia como fenómeno para a formação, não só como legado divino, como também formação do povo numa lógica de atribuição, ou seja, obediência como bênção e desobediência/ esquecimento como a punição/ perdição – pecado. Estamos a falar do principio da atribuição.

            Embora no Antigo Testamento, o Espírito Santo estivesse implicitamente contido na escritura, apesar de não ser referido de forma explicita, foi preciso tempo para perceber que a “linguagem de Deus” se fazia pelas palavras humanas e só mais tarde, por volta do ano 63 a.C, é que essa “linguagem de Deus”, se revela autêntica na pessoa de Jesus e é esta revelação que ninguém esperava – Mistério da Encarnação, em que o Verbo se fez Carne e habitou entre nós.[8]

            Jesus é chave do Antigo Testamento, é aquele que conhece a Escritura como ninguém, é o mesmo sobre o qual redigiu e interferiu pelo cunho humano a Sagrada Escritura, pois é o único, não só capaz de interpretar o seu sentido pleno (Haggadah e Halakhah), como também o qual faz recair sobre Ele, as promessas e profecias, as maiores e as mais difíceis questões paradigmáticas da vida enquanto tal. Ler o Antigo Testamento e ouvir Torah por Jesus, é praticamente ouvir, em primeira mão, o autor, é Deus que fala.

            Portanto, há interferência do mesmo Espírito que é o mesmo Deus e Senhor, o autor por detrás da intenção de cada compositor literário – hagiógrafo; É com a sucessão apostólica que os textos vão ganhar nova dimensão em torno da vida de Jesus, em que por um lado, era o Ungido, o Messias, Aquele que estava para vir desde o Antigo Testamento, e por outro lado, na mesma perspetiva da fé, aquele que ressuscitando ao terceiro dia, proporciona continuidade no crente, de escrever todos os acontecimentos que acharam importantes para a revelação e continuidade dessa mesma fé – Novo Testamento. Estamos perante factos que a ciência não ousa negar, não só a historicidade de Jesus de Nazaré concretamente, como também, não pode interferir num contexto histórico-critico porque a experiência de fé de um povo, não é uma experiência de dados científicos, objetivamente. A natureza da Inspiração Bíblica é, em boa parte, a própria revelação divina, a qual permite a comunicação entre Deus e o homem, fazendo dessa mesma comunicação uma transmissão e linguagem simbólica ao ponto de fazermos da nossa vida, da nossa experiência de fé, uma vida partilhada já com Deus[9]. O importante é o Querigma, como dizia Bultmann, e muito tempo perderam, em tentar fazer da escritura uma cientificidade de que a fé era infalível ao ponto de não haver contradição ou possibilidade de erro.

            A Palavra de Deus tem caracter religioso e não científico, porque corresponde a cada período e tempos de vida da comunidade, cria esta comunhão única que pela linguagem humana fica iluminada pelo mesmo espírito de quem redige, portanto, a fé não se mede aos palmos propriamente. Passar da Oralidade à Escritura, confere fidelidade dos acontecimentos vividos e também viabilidade da própria textualidade para que a vida, na esperança e na fé, continue a dar fruto naquilo que é, a experiência de um povo que caminha para Deus, isto é, Deus não abandona e torna-se mais presente e próximo que aquilo que possamos imaginar por ação do Espírito[10].

            Já no segundo capítulo, o autor aborda e trata as questões relacionadas com a veracidade da Palavra, sobretudo quanto ás consequências ou efeitos e à inerrância, ou seja, quanto à canonicidade dos textos como sendo aqueles e não outros, a verdadeira Palavra de Deus não no sentido científico, mas no sentido que continua a gerar vida no leitor[11].

            Ora se a Palavra de Deus, é um processo contínuo, que vai educando o povo na fé, que vai preparando a sua vinda, que vai paulatinamente atuando na vida concreta do povo e em particular, não é estático, é dinâmica, vai desenrolando até ao ponto de fazer sentido à compreensão humana, a Sua realização plena, ou seja, manifestada concretamente em Jesus - o próprio Deus em pessoa. De facto, poucos o viram, exemplo dos discípulos de Emaús, que só à luz da fé, é que foi possível o ver-a-Deus.[12] Por isso, a Bíblia é um livro, percorrido muitíssimas vezes por caminhos sinuosos em que, mesmo na hostilidade, fala a verdade e a verdade é Deus, revelado em pessoa. A Sagrada Escritura não deixa de ser uma história, entendida não como um “corpus” composto com principio meio e fim, isto é, como se fosse pensado ou projetado cuidadosamente, mas redigida e interpretada teologicamente, que procura dar lugar aos acontecimentos, fazendo conectar e cruzar essa mesma história, à luz dos acontecimentos e ao contexto em que Deus fala e se revela. Como história, é a da humanidade em concreto, todavia, a Bíblia é um testemunho de fé, o plano de salvação que Deus tem para o Homem, isenta de erro, objetivamente[13].

            Os métodos de interpretação da Bíblia continuam a ser, essencialmente, os da patrística: o sentido literal – o que aconteceu; alegórico – o que está por detrás da letra; sentido moral – o que devemos fazer; anagógico – escatologia, fim último.

O termo Jerusalém é muito usado para explicar estes quatro sentidos bíblicos medievais: em sentido literal, indica a cidade histórica de Jerusalém; em sentido alegórico, indica a Igreja; em sentido moral, indica a minha ligação com Deus, e em sentido anagógico, significa a Jerusalém celeste (Ap21-22).”[14]

             A Palavra de Deus, suscita no crente uma interpretação pessoal acima de tudo, mas torna-se penetrante porque nos coloca frente à nossa própria essência e causa, eu diria no limite, ontológica, isto é, a própria essência do nosso Ser, um verdadeiro “Ser-se” de Deus, pois de outro modo não se entenderia este convite à comunhão eterna com o Criador; coloca-nos diante da revelação e não há outra hipótese senão deixar a alma falar com Deus e sermos nós mesmos o Seu instrumento, isto é, torna-se efetivamente um diálogo e o modo privilegiado de Deus se fazer presente na vida pessoal e comunitária[15]. O modo de Deus atuar, é realmente libertador e por isso, põe término à inércia e à distância daquilo que é a relação Homem-Deus, por intermédio da Pessoa de Jesus de Nazaré, aquele que fala em nome de Deus, é o próprio a “vestir” a pele humana, aquele que depois de falar, cria a missão daqueles que o querem seguir, a verdadeira intenção de não conseguirem conter a fim de que fique registado pela escrita, que é por excelência, o registo da Sua atividade – a Sagrada Escritura[16].

            Para terminar, o autor fala-nos e muito bem, a Palavra de Deus alcança toda a dimensão humana, fazendo dela a sua própria estrutura, isto, é o seu modo de falar, «Eu lhes fiz conhecer o teu nome, e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado esteja neles, e eu neles esteja» (Jo 17,26), o mesmo se diz no Antigo Testamento: «A Palavra que sai da minha boca não voltará a mim vazia, mas fará a minha vontade, cumprirá a sua missão» (Is 55,11;45,23)[17]



[1] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.17-18.

[2] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.18-19.

[3] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.21-22.

[4] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.30-31.

[5] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.31.

[6] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.39.

[7] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.39-40.

[8] Cf Jo1,14; VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.43.

[9] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.45-48.

[10] Cf Ex4,12; Mt10,20; Lc12,12; VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.49-54.

[11] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.58-65

[12] Cf. Lc21,13-35

[13] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.69-71.

[14] ALVES Herculano, Documentos da Igreja sobre a Bíblia, p43

[15] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.74-75.

[16] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.77-79.

[17] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.99-101.