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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Maria na Formação Intelectual e Espiritual

 

Com esta Carta a Congregação para a Educação Católica, o autor começa por falar da Mariologia como tema essencial no ministério de Cristo e da Sua Igreja. Foi finalmente o Cardeal Konig que fundamentou o estudo sobre a posição e o mistério de Maria como marco teológico, ou seja, como um dado que contribui fundamentalmente para o Mistério de Cristo e no fundo, para a fé da Igreja.[1]

Maria, aparece assim como dado para a Revelação Divina, em que por um lado nos chega pela Sagrada Escritura, isto é, pela Tradição que por sua vez dá origem a uma memória escrita, isto é, à Escritura propriamente dita dos acontecimentos mais marcantes, que revelam a própria ação de Deus em favor dos homens, e por outro lado a Revelação que dá-se em pleno na pessoa de Jesus de Nazaré, o Filho da Virgem, o qual faz recair todas as prerrogativas do povo de Israel, que sobre ele recai os desígnios da salvação, da vinda do Messias que viria resgatar e libertar o seu povo do pecado, Aquele que, por fim, à luz da fé se percebe na integra a Torah, ou seja, o Antigo Testamento que prepara e se percebe no Novo Testamento, não esquecendo que Jesus é o verdadeiro interprete (Hagadah / Halakah) da Palavra, e se Deus tem alguma coisa a dizer ao mundo, é sobre Seu Filho que o faz.

 É importante, neste sentido, destacar o lado humano de Deus que nasce do seio de uma mulher – Maria, a Virgem, e por isso, era de esperar naturalmente que tivesse a sua teologia. Quanto mais aprofundarmos o Mistério em torno de Maria, mais percebemos o Mistério da Encarnação de Deus.

Na Encíclica Redemptoris Mater, do nosso querido Papa João Paulo II, vemos através da passagem de Gal 4,4-6 , que o amor trinitário, isto é, Pai, Filho e Espirito Santo, não coloca de parte o ventre sobre o qual foi gerado o Seu próprio Filho, a fim de que, por Ele possamos de chamar Deus por «Abbá! Pai!», significa assim que Deus é mais humano que aquilo que possamos pensar e que se serviu da Sua humilde Serva, a quem hoje e para sempre chamamos efetivamente de Mãe, pois nas palavras de Jesus, Ele é muito concreto quando se dirige a Maria como mãe do discípulo e ao discípulo, Maria como sua mãe. Eu diria, que no limite, aqui nasce a Igreja, isto é, Maria abraça todos aqueles que acolhem a fé em Seu Filho.

A Lumen Gentium veio contribuir para a revelação divina, trazendo novas perspetivas, novos horizontes teológicos a partir de Maria num retorno ás fontes, sobretudo ao método histórico-critico, quero precisamente frisar o esplêndido, belo e honroso cântico que Maria exprime pela sua boca, as maravilhas que Deus criou nela, no futuro do seu povo e do mundo –  Magnificat ,na visão de Urs von Balthasar.[2] Falar sobre Maria, implica ir ás raízes dos acontecimentos, e vemos algumas passagens dos evangelistas que aludem a Maria como o Símbolo da fé porque se Cristo nasce para nos dar a Salvação, isto é, não mais se separar de Deus, é de supor, portanto, que é em Maria que se dá a união das duas naturezas numa só pessoa – Cristo.

O Concilio diz e determina Maria na missão da Igreja a partir de duas perspetivas, a primeira aquela que é a Theotokos (Mãe de Deus), a Serva Fiel porque coparticipante no acolhimento da sua própria missão que Deus Lhe confia, na Palavra Reveladora - Jesus, pois aponta para o Filho como quem: «Fazei tudo o que Ele vos disser» (Jo 2,5), na obra redentora da humanidade, ou seja, ela é o «Faça-se a Tua vontade e não a minha» (Lc 22,42), eu diria que estamos perante um forte valor teológico que se relaciona diretamente com Cristo. Numa segunda perspetiva, ela é também a discípula, acompanhou sempre os apóstolos e foi para eles um ícone e Símbolo da fé, Mãe de todos os seus filhos[3], portanto, mãe da Igreja, a qual tem de ocupar, por força da sua própria natureza, um lugar especifico para a inspiração no exercício da fé, da esperança e da própria missão da Igreja.

Foi havendo cada vez mais um aprofundamento do papel de Maria na Igreja e já no pós-concilio, determina-se essa posição de não isolamento no mistério de Deus, pelo contrário, contribui e percebe-se melhor tendo em conta que Deus age humanamente. É cada vez mais um caminho que para entender a ação de Deus em Maria, nos deixa sempre em aberto uma vasta interpretação, vejamos que por exemplo, para a teologia dogmática Nosso Senhora é vista em algumas dessas perspetivas: a Imaculada Conceição, Maternidade Divina; Ação de Maria na obra da Salvação, Dogma da Assunção. Num outro aspeto, vemos que Maria é também vista como referência em outras religiões como o Islamismo e por isso, Maria é a expressão não só na liberdade como na obediência e cooperação na obra de Deus, desprezando de uma vez por todas a ideia de que a mulher não tem lugar tão importante quanto o homem, no projeto salvífico.

Maria aparece como elemento-chave para não só interpretar à luz da fé a vinda de Cristo, como também ser um pilar fundamental no sentido de contribuir à Santa Igreja o exemplo de Santidade em que levou a Sua própria vida. A presença Materna de Maria pode ser Operante – cooperação no nascimento dos fieis para a vida na Graça e exemplo no seguimento de Cristo; é também Pastoral porque esteve sempre presente no inicio da vida da Igreja, desde a conceção de Cristo até ás primeiras comunidades Cristãs junto dos apóstolos e continua assim, deste modo nos nossos dias, a ser o exemplo na fidelidade a Deus.

Vemos assim que a Mariologia ou o estudo de Maria à luz das verdades reveladas de Deus, ela espelha-se na Cristologia, isto é, na própria história de Jesus, na sua missão e vida, pois n´Ele se vê a Salvação, a comunhão para a eternidade junto do criador. Maria assume um lugar essencial não só para o estudo da vida e mistério de Cristo, como ela é essencialmente eclesial na medida em que gera vida no crente pela sua própria fé. Maria foi sempre vista também por algum tipo de sentimento pietista, Aquela que, como mãe, intercede por nós a Deus, ao ponto de ela mesma ser vista como a Mãe de Deus, coparticipante na dignidade e glória ao ponto de Ela mesma ter atributos, quer Cristológicos e mesmo divinos, já que Deus a escolheu para se fazer e Ser um de nós.[4]  

Implica agora falarmos um pouco daquilo que é a intervenção de Deus em Maria para que fosse «gerado e não criado» o Seu próprio Filho. Relembremos o momento da visitação de Isabel a Maria, para dizer que, mesmo na tortuosidade da nossa vida, Deus continua a realizar a Sua obra. Se por um lado Isabel era estéril e Maria, virgem, não significa um paralelismo, mas à luz da fé, significa antes que Deus mostra que tudo é Graça, é bênção, é desígnio para salvação do homem e quis que tudo isto ficasse registado.

Se Jesus nasce de uma virgem e que sobre o qual o educou, o ensinou a amar, o fez crescer sob as raízes e costumes judaicos, participou no Shabbat, que falava como ninguém a respeito das “Coisas do Alto”, que criava nas pessoas a missão discipuladora de O seguir, é apreensível, que deste modo, Jesus não era um simples Judeu para o Seu povo. Todavia, o dado biológico não impera sobre o dado Teológico na medida em que não interessa ao mistério e por isso, a própria conceção de Jesus remete-nos para a transcendência, para a espiritualidade que sem esquecer todo o seu mistério, toda a sua Cristologia e também a Soteriologia, não podemos colocar de parte a Mariologia, pois é através dela, que Deus fala de modo mais humano possível; Vemos na Mãe a síntese da divindade e da humanidade, essencialmente como um vínculo que nos volta a Religar e a Reler a nossa imagem e semelhança a Deus.

Termino esta síntese com as palavras de J.Ratzinger: «um nascimento sem intervenção de um pai terrestre é a origem intrinsecamente necessária daquele que podia dizer a Deus “Meu Pai”, daquele que, mesmo sendo homem, era fundamentalmente filho, o Filho desse Pai»[5]



[1] Carvalho, M. (2004). Maria, figura da Graça (p. 94). Lisboa: Universidade Católica Teológicos.

[2] Carvalho, M. (2004). Maria, figura da Graça (p. 97). Lisboa: Universidade Católica Teológicos.

[3] Cf. Jo (19,26-27)

[4] Carvalho, M. (2004). Maria, figura da Graça (p. 103). Lisboa: Universidade Católica Teológicos.

[5] Benedicto. (1977). Die Tochter Zion. Einsiedeln: Johannes Verlag. (p.49)

sábado, 19 de dezembro de 2020

A Eucaristia - Sacramento de Amor Trinitário

 Breve Síntese sobre a obra de António Augusto dos Santos Marto


O Autor começa por falar sobre as palavras do nosso querido Santo Papa João Paulo II, destacando que no ano 2000, seria o ano de «Soli Deo gloria», o que por outras palavras significa: «a Glorificação da Santíssima Trindade da Qual tudo provém e à Qual tudo se orienta no mundo e na história»[1]

            Vemos ao longo da história da Igreja, o seu caminho em diálogo com os demais saberes e ciências, um percurso extremamente difícil, não só porque teriam de pensar o problema do Sacramento teologicamente, e de certa forma cientificamente ao ponto de os dados da fé serem observáveis e verificáveis, como também, responder de forma coerente aos desafios que o mundo nos coloca diante das filosofias racionalistas: idealismo ao qual coloca o homem como centro do conhecimento, é a propensão do espirito para o devaneio, como que imaginação ou sonho; o próprio deísmo que no fundo, nos diz que Deus só se encontra na razão desprezando a própria revelação; a par destas teorias, o Jansenismo que assume traços e doutrinas protestantes, desvalorizando arbitrariamente alguns elementos doutrinais, a graça era concedida pela predestinação, o pecado original inclinou o género humano para o mal, enfim, era impossível verificar e confrontar Deus na pessoa de Jesus. A fé pensa-se e entende-se com a carne, ou seja, Deus pensa-se sendo-se humano, Cristo torna-se a própria revelação de Deus e essa revelação foi a maneira mais humana que poderia ser: nasceu no seio da virgem Maria e se Fez Homem, tal e qual como professamos no Credo Constantinopolitano.

Antes de abordarmos o tema, julgo ser oportuno nesta fase perceber, em traços gerais e em forma de introdução, aquilo que é a própria «Eucaristia», o próprio «Sacramento» e por fim, «Amor Trinitário». Começando pela Eucaristia, significa uma celebração que nos lembra a morte e ressurreição de Jesus Cristo, todavia, há muito mais a dizer como veremos ao longo do trabalho desenvolvido; o «Sacramento» são os mistérios de Deus, é uma combinação inseparável entre aquilo que o objeto diz de si num modo mais profundo, eu diria, atos cultuais com significado profundo. Por fim o «Amor Trinitário» seria o união entre o Pai e o Filho por meio do vinculo do Espirito Santo que é amor.

Portanto, temos sempre que partir do principio estas grandes questões nos atiram para realidades profundas, e com um significado que é impossível de apreender na totalidade porque nos transcendem. Estudar a Santíssima Trindade só se entende estudando cada uma das partes e só se entende a relação que há entre elas, precisamente pela mutua relação que há entre os elementos constituintes. A revelação de Deus dá-se no contexto da história da humanidade, dá-se de forma mais humana possível, nasce da iniciativa de Deus, seguido da inspiração dos Santos profetas na Sagrada Escritura até atingir a sua culminância na pessoa de Jesus Cristo, o qual faz recair sobre si todas as prerrogativas da vida de Israel, sobre o qual recai os sinais da vinda do “Rei Justo” que salvaria o seu povo, acautelaria o homem do erro, da ignorância, do pecado enquanto tal. É inevitável não dizer que Jesus é o rosto divino, esta auto-comunicação que faz de si mesmo, mostra-nos na plenitude a Revelação de Deus, isto é, se Deus tinha alguma coisa a dizer à humanidade, é por Jesus.

É absolutamente importante falarmos sobre o modo como Jesus atua, que tem a sua Teologia, permita-me que o diga desta maneira. Quero dizer que a maneira de Jesus de ser e amar, é ir ao encontro dos seus, de se juntar e “reunir à mesa”, sobretudo deixar em aberto e permitir que o homem acolha e pense sobre seu modo de agir; Jesus deixa na iminência a sua divindade e a evidência o seu lado mais humano. No fundo, ele não faz distinção sobre quem quer que seja que se sente com ele à mesa, seja pecador ou não, o importante é celebrar ardentemente a Páscoa, seu desejo mais profundo; Esta comunhão de Jesus, mostra-nos o banquete escatológico, isto é, abre-nos a derradeira possibilidade de participar eternamente com Deus-Pai. Todavia, para perceber melhor estes mistérios teremos de aprofundar melhor o cerne da questão.

Esta entrega que Deus faz de Si pela entrega do Seu próprio filho revela muito mais que aquilo que possamos imaginar, é mais simples que abstrato, é mais humano que celestial; estamos perante um amor salvífico sobre o qual, o próprio filho experimenta a carne, vive humanamente, balanceando a sua divindade, para que haja a Salvação dos homens. A Eucaristia é este dar-se de Deus sem reservas, tal e qual como Deus toma a iniciativa de se dar e dar a conhecer no Seu filho, que torna possível e cognoscível para o homem, a compreensão daquilo que é o Mistério Pascal.

            A Revelação de Deus atinge o seu clímax, em que por um lado mais nos parece paradoxal por se consumar numa morte e morte de Cruz, a maior pena sob o jugo romano, mas por outro lado, revela dimensão do amor por não poupar o seu próprio filho para nos salvar; Obviamente, que para a época foi um escândalo, e para quem não conhece o Cristianismo, continua a ser, mas por outro lado, continua a deixar cada vez mais em aberto todo este mistério, eu diria no limite, um chamado de Deus para O conhecer como quem: Eu dei a vida por ti e continuo a dá-la.

Deus não quer que se tenha “pena”, mas quer por fim à violência humana. Em boa verdade, é o próprio Deus que se entrega e mostra que ama e salva, pois se não fosse desta maneira, não se compreenderia a atitude de Jesus numa entrega filial sem resservas, como quem saberia que a sua hora estaria para chegar, como quem ao longo da sua vida, veria o seu sentido ultimo. A própria atitude de Jesus é vinculativa à intenção de Deus para com o mundo, e esta atitude não é mais que a comunhão, o amor que há entre o Pai e o Filho – Espirito Santo.

O modo mais evidente desta comunhão revê-se nas palavras de Jesus: «Pai, em tuas mãos entrego o meu Espirito» (Lc 23,46) e é sobre o madeiro da Cruz que essa entrega assume para sempre o conteúdo da Morte, Paixão e Ressurreição de Jesus deixando bem explicito, que o mesmo espirito que une Jesus a Deus-Pai, é agora o mesmo espirito que une o homem ao criador, o qual só por Jesus é possível o “Ver-a-Deus”. Destaco a passagem que mais me comoveu e me encheu de alegria: «Eu lhes fiz conhecer o teu nome, e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado esteja neles, e eu neles esteja» (Jo 17,26). Evidente está aquilo que é a união hipostática, ou seja, Jesus é da mesma substância que Deus, consubstancial ao Pai, daí se perceber que o Espirito Santo é o amor entre o Pai e o Filho.

A Eucaristia é o resumo duma história salvífica em que Deus não cansa de nos chamar ao encontro, à santidade e à comunhão com Ele, um resumo que vai desde o Antigo Testamento e atinge o clímax nesta entrega de Jesus presente no Novo Testamento. A Eucaristia já realizada pelo próprio Jesus é transmitida aos discípulos, e repare-se que a transmissão é muito mais que uma mera comunicação, é antes um acolher, viver, refletir e um dar-se a essa experiência de encontro, de comunhão com o próprio Deus; Ela é Sacramento pois é um dar-se do próprio Deus aos homens, não é “alguma coisa”, é antes um “Alguém” que se dá a conhecer e que renova a cada instante todo o nosso ser, ao ponto de nos darmos conta do nosso verdadeiro sentido de vida; é a nossa própria vida em atualização com Cristo, ganhando desde logo uma nova dimensão, tanto espiritual, crente, física-emotiva.

A filiação divina e eterna de Jesus é precisamente o modo como ele viveu: servo e filho, ofereceu e morreu na Cruz como oblação definitiva, mantida para sempre, digna de louvor e adoração. Assim sendo, não posso deixar de dizer que a Eucaristia é como que um movimento descendente, seguido de um movimento ascendente, à semelhança da própria atitude de Jesus no sentido de pertença ao Pai, ao Ser de Deus, e neste sentido, é de esperar o retorno, isto é, a nossa resposta desta iniciativa de Deus.

A Trindade convida à eucaristia, e assim, a Igreja, como corpo místico de Cristo e também ela sacramental (pois é o altar do mundo), tem Cristo como seu grande Sacramento, não é mais só a presença real e viva de Cristo, mas que a todos nos envolve no seu amor trinitário, isto é, que por Jesus é possível a vida eterna junto do Pai. A Igreja é vista assim num duplo movimento: por um lado tornamo-nos concelebrantes do seu mistério, que nos implica e nos envolve no seu amor, e por outro lado, o acolher deste dom oferecido, que participando nesta comunhão eclesial recebemos a ação de graças: ação salvífica de Deus em Cristo.

A Eucaristia é acima de tudo um dom de Deus, que se dá permanentemente na história da humanidade, pois de outro modo não se entenderia a sua única e própria condescendência. É realmente nossa condição e obrigação, a fim de que todo mistério seja compreendido e devidamente acolhido, dar graças a Deus por todas as maravilhas da criação como também a própria salvação, reparemos que até o próprio mundo nasce e renasce para a vida, a própria natureza ressuscita, o que no fundo esta é a nossa súplica, é que Deus permita a nossa salvação por Jesus. É inevitável não pensar no ressuscitado para compreender o mistério da salvação, pois se Ele torna-se presente na própria Eucaristia, significa que o banquete terreno que ele tanto desejava e que era pretexto para esta comunhão eclesial (ainda que subentendida), é agora o banquete celestial, que nos atira para uma realidade divina. A eucaristia compromete o Cristão e a própria comunidade a viver fielmente os mistérios de Deus, ela é sobretudo o pão da vida, sustento espiritual que faz da nossa fé a inabalável confiança no amor de Deus-Pai.



[1] João Paulo II, Tertio Millennio Adventiente, n.55.


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

“A Palavra Inspirada” Natureza da Inspiração Bíblica e Propriedades Inerentes à Palavra Inspirada

A “Palavra Inspirada”, é um termo brilhante que poderia responder eficazmente à pergunta: o que é Sagrada Escritura. Conquanto, é muito mais que isso. A escolha deste livro, de Armindo dos Santos Vaz, suscitou especial interesse porque nos fala de um modo genérico, apesar da imensa bibliografia e conhecimento, de que a Sagrada Escritura não é pura literatura, isto é, não é composta por palavras soltas ao vento, à deriva no tempo e no espaço, como que inocentes no seio de um povo. Há vida por detrás de cada palavra mencionada na Sagrada Escritura, há um autor e locutor implícito à mensagem que é transmitida, que sendo distintos, se tornam num só redator. Há uma relação intrinsecamente profunda em que Deus é o autor da Sagrada Escritura por intermédio do Homem.[1]

            A Palavra é viva porque é atual face ás questões centrais da vida do homem, e como não poderia deixar de o ser, podemos encontrar n´Ela, as experiências, os testemunhos, as (con)vivências e esperanças, a história viva da criação da humanidade, a relação filial entre o Pai e o Filho, Deus e Homem, e religião enquanto tal, pois não termina como que se a última página da Bíblia se tratasse. Pelo contrário, só termina, no bom sentido de se completar, de se consumar, com a nossa resposta que é a própria adesão. Este é o tempo, em que num primeiro momento, Deus se revela pela Palavra – Antigo Testamento, e num segundo momento encarna a própria Palavra – Novo Testamento, não há melhor clarividência e compreensão possível. A Sagrada Escritura, não é um livro de costumes, nem um livro moralístico como se encontrássemos nele as respostas adequadas à realidade de hoje. A Revelação é coincidente com a Palavra, pois esta é uma revelação segunda sem perder a força em nenhum momento da primeira.[2]

            A verdade é que a Sagrada Escritura continua a ser um ponto central no seio da Igreja que é casa de Deus, e, o melhor que tem para oferecer – o testemunho de um povo que peregrina na fé ao Deus de Israel, a mensagem de um Deus que fala por intermédio dos Santos Profetas – aqueles que são divinamente chamados a pronunciar humanamente a Palavra Divina e aplicar essa Palavra à comunidade e vida de Israel, fazendo dessa vida, uma Escritura num processo compósito, isto é, contínuo[3].

            A Bíblia não é um livro numeroso e literalista, ou conjunto de livros como falam os ditos sábios e racionalistas “atuais”. Em boa verdade, a Bíblia é um livro numerosamente pequeno para descrever os acontecimentos vividos e transmitidos. Graças a Deus, os acontecimentos são sempre maiores que as palavras; A Sagrada Escritura não é de caris científico, caso contrário, não seria inspirado, mas sim forjado, e aqui, é onde cerne a sua real distinção face à vasta literatura imprudente e ás demais críticas modernas de que a Sagrada Escritura é alvo; ela é um livro de fé e deve ser visto sempre desta perspetiva. É preciso contextualizar “cada livro” à sua época, com todas as ferramentas inerentes à construção do mesmo, ou seja, recursos literários, estilísticos, provérbios, sapiência, que fizeram dele, o “livro” que é hoje. A Bíblia deve ser tomada e compreendida, experienciada e vivida profundamente, porque corresponde ao contexto histórico da vida de um povo, experiências de um povo que é chamado à Salvação (Israel e Igreja apostólica). Trata de uma experiência de fé, a qual a ciência não tem habilitação nem instrumentos para tratar, pois não se estuda com base em dados experimentais, ou factualidades matemáticas ou arqueológicas, quando muito podem contribuir.[4]

            Está ainda em aberto a possibilidade de estudar a Sagrada Escritura no seu sentido pleno, sem que nos habituemos a que tudo tenha que ter uma explicação lógica e óbvia para os factos, como que só a certeza nos deixe de inquietar. Todavia, não podemos dizer que, por não termos visto o que aconteceu, deixe de ser verdade. A Tradição é isto mesmo, o trazer da história vivida e transmitida, uma história de vida de um povo, que passa da experiência à escrita, e esta, não pode viver separada da revelação, pois é prova viva dessa mesma experiência e dessa vida, por isso estabelecem desde sempre mútua relação.

            A Providentissimus Deus é ainda hoje, o primeiro grande documento da Igreja sobre a Bíblia na época moderna, alertando o homem ao chamamento sobrenatural a que é sujeito por intermédio do Espírito Santo, o qual (im)pele e move os profetas e escritores, como os apóstolos, a redigir justamente tudo aquilo que é necessário para o desvelamento da fé. Contudo, a constituição dogmática Dei Verbum vem contribuir significativamente, para aquilo que é a própria Revelação Divina na inspiração bíblica, Escritura e Tradição, ou seja, a Palavra como Revelação, ou, a Revelação como sendo a própria Palavra objetivamente[5]. Aqui, é inevitável não podermos falar em Yeshua Hamashiach, transliterado ao hebraico ישוע המשיח , personificação da Palavra, não há melhor coerência dos factos que não a pessoa de Jesus, o qual faz corresponder e coincidir o sentido da Sagrada Escritura no seu todo, desde o Antigo à consumação do Novo Testamento[6]. A Escritura é parte integrante da fé da Igreja e deve ser venerada tal como a Tradição que nos é transmitida integralmente sob todo um processo rigoroso, que cabe à Patrística e à exegese o fazer.

            Ora se Deus quer se revelar, não pode enganar. A Escritura Sagrada foi e ainda continua a ser, pelos atuais sábios da escrita moderna, alvo de critica de autoria literária sob o ponto de vista redaccional, ora é palavra divina, ora palavra humana e graças a Santos Teólogos, não tão distantes do nosso tempo, puderam colocar termo a essas suspeitas que tendiam a fazer da Sagrada Escritura uma palavra meramente humana. Em boa verdade, a discussão não passa tanto por aí, pois de facto, é redigida pelo punho humano, todavia, essa palavra só se consegue explicar e ter sentido, ganhando força no seu próprio contexto, ou seja, não é uma história qualquer, sem alcance semântico e muito menos à deriva. A Palavra passa por sucessivas etapas de vida para se tornar Escritura, é um processo compósito, isto é, contínuo que se prolonga por vários anos e que por essa razão, não se pode esperar que se compreenda um texto redigido do séc. IX a.C da mesma maneira que um do séc.I d.C sob todo um ponto de vista literário. Os textos são feitos com os conhecimentos linguísticos e modelos daquela época.

            A história do Povo era movida pelo mesmo Espírito de quem a redigia, Israel foi ao longo desse tempo reincorporando tradições e acrescentando memórias de vida, significa por isso, que antes de se escrever, tudo era vivido, experienciado, acreditado e só depois escrito, esta é a força implícita da Palavra, sem olhar a “erros”. Os acontecimentos são sempre maiores que as palavras e fazem disso um facto absolutamente inegável, mostrando que a Bíblia, passa pela oralidade e desta para a escrita, tornando-se história concreta numa revelação que causa no autor uma irradiação divina, isto é, «quem O procura, O encontra…» (Lc7,7). Mesmo sem ver a Deus, Ele se faz presente pela forma como atua, fala, se expressa, vive e convive, objetivamente. [7]

            Os primeiros redatores, Amós e Oseias (740 a.C), Isaías (735 a.C), Miqueias, Jeremias – que testemunha a queda do Templo, Elias e Eliseu, vão ser aqueles que mais se vão destacar e aprumar a história de vida de Israel no Antigo Testamento, sobretudo, aquilo que é a profecia como fenómeno para a formação, não só como legado divino, como também formação do povo numa lógica de atribuição, ou seja, obediência como bênção e desobediência/ esquecimento como a punição/ perdição – pecado. Estamos a falar do principio da atribuição.

            Embora no Antigo Testamento, o Espírito Santo estivesse implicitamente contido na escritura, apesar de não ser referido de forma explicita, foi preciso tempo para perceber que a “linguagem de Deus” se fazia pelas palavras humanas e só mais tarde, por volta do ano 63 a.C, é que essa “linguagem de Deus”, se revela autêntica na pessoa de Jesus e é esta revelação que ninguém esperava – Mistério da Encarnação, em que o Verbo se fez Carne e habitou entre nós.[8]

            Jesus é chave do Antigo Testamento, é aquele que conhece a Escritura como ninguém, é o mesmo sobre o qual redigiu e interferiu pelo cunho humano a Sagrada Escritura, pois é o único, não só capaz de interpretar o seu sentido pleno (Haggadah e Halakhah), como também o qual faz recair sobre Ele, as promessas e profecias, as maiores e as mais difíceis questões paradigmáticas da vida enquanto tal. Ler o Antigo Testamento e ouvir Torah por Jesus, é praticamente ouvir, em primeira mão, o autor, é Deus que fala.

            Portanto, há interferência do mesmo Espírito que é o mesmo Deus e Senhor, o autor por detrás da intenção de cada compositor literário – hagiógrafo; É com a sucessão apostólica que os textos vão ganhar nova dimensão em torno da vida de Jesus, em que por um lado, era o Ungido, o Messias, Aquele que estava para vir desde o Antigo Testamento, e por outro lado, na mesma perspetiva da fé, aquele que ressuscitando ao terceiro dia, proporciona continuidade no crente, de escrever todos os acontecimentos que acharam importantes para a revelação e continuidade dessa mesma fé – Novo Testamento. Estamos perante factos que a ciência não ousa negar, não só a historicidade de Jesus de Nazaré concretamente, como também, não pode interferir num contexto histórico-critico porque a experiência de fé de um povo, não é uma experiência de dados científicos, objetivamente. A natureza da Inspiração Bíblica é, em boa parte, a própria revelação divina, a qual permite a comunicação entre Deus e o homem, fazendo dessa mesma comunicação uma transmissão e linguagem simbólica ao ponto de fazermos da nossa vida, da nossa experiência de fé, uma vida partilhada já com Deus[9]. O importante é o Querigma, como dizia Bultmann, e muito tempo perderam, em tentar fazer da escritura uma cientificidade de que a fé era infalível ao ponto de não haver contradição ou possibilidade de erro.

            A Palavra de Deus tem caracter religioso e não científico, porque corresponde a cada período e tempos de vida da comunidade, cria esta comunhão única que pela linguagem humana fica iluminada pelo mesmo espírito de quem redige, portanto, a fé não se mede aos palmos propriamente. Passar da Oralidade à Escritura, confere fidelidade dos acontecimentos vividos e também viabilidade da própria textualidade para que a vida, na esperança e na fé, continue a dar fruto naquilo que é, a experiência de um povo que caminha para Deus, isto é, Deus não abandona e torna-se mais presente e próximo que aquilo que possamos imaginar por ação do Espírito[10].

            Já no segundo capítulo, o autor aborda e trata as questões relacionadas com a veracidade da Palavra, sobretudo quanto ás consequências ou efeitos e à inerrância, ou seja, quanto à canonicidade dos textos como sendo aqueles e não outros, a verdadeira Palavra de Deus não no sentido científico, mas no sentido que continua a gerar vida no leitor[11].

            Ora se a Palavra de Deus, é um processo contínuo, que vai educando o povo na fé, que vai preparando a sua vinda, que vai paulatinamente atuando na vida concreta do povo e em particular, não é estático, é dinâmica, vai desenrolando até ao ponto de fazer sentido à compreensão humana, a Sua realização plena, ou seja, manifestada concretamente em Jesus - o próprio Deus em pessoa. De facto, poucos o viram, exemplo dos discípulos de Emaús, que só à luz da fé, é que foi possível o ver-a-Deus.[12] Por isso, a Bíblia é um livro, percorrido muitíssimas vezes por caminhos sinuosos em que, mesmo na hostilidade, fala a verdade e a verdade é Deus, revelado em pessoa. A Sagrada Escritura não deixa de ser uma história, entendida não como um “corpus” composto com principio meio e fim, isto é, como se fosse pensado ou projetado cuidadosamente, mas redigida e interpretada teologicamente, que procura dar lugar aos acontecimentos, fazendo conectar e cruzar essa mesma história, à luz dos acontecimentos e ao contexto em que Deus fala e se revela. Como história, é a da humanidade em concreto, todavia, a Bíblia é um testemunho de fé, o plano de salvação que Deus tem para o Homem, isenta de erro, objetivamente[13].

            Os métodos de interpretação da Bíblia continuam a ser, essencialmente, os da patrística: o sentido literal – o que aconteceu; alegórico – o que está por detrás da letra; sentido moral – o que devemos fazer; anagógico – escatologia, fim último.

O termo Jerusalém é muito usado para explicar estes quatro sentidos bíblicos medievais: em sentido literal, indica a cidade histórica de Jerusalém; em sentido alegórico, indica a Igreja; em sentido moral, indica a minha ligação com Deus, e em sentido anagógico, significa a Jerusalém celeste (Ap21-22).”[14]

             A Palavra de Deus, suscita no crente uma interpretação pessoal acima de tudo, mas torna-se penetrante porque nos coloca frente à nossa própria essência e causa, eu diria no limite, ontológica, isto é, a própria essência do nosso Ser, um verdadeiro “Ser-se” de Deus, pois de outro modo não se entenderia este convite à comunhão eterna com o Criador; coloca-nos diante da revelação e não há outra hipótese senão deixar a alma falar com Deus e sermos nós mesmos o Seu instrumento, isto é, torna-se efetivamente um diálogo e o modo privilegiado de Deus se fazer presente na vida pessoal e comunitária[15]. O modo de Deus atuar, é realmente libertador e por isso, põe término à inércia e à distância daquilo que é a relação Homem-Deus, por intermédio da Pessoa de Jesus de Nazaré, aquele que fala em nome de Deus, é o próprio a “vestir” a pele humana, aquele que depois de falar, cria a missão daqueles que o querem seguir, a verdadeira intenção de não conseguirem conter a fim de que fique registado pela escrita, que é por excelência, o registo da Sua atividade – a Sagrada Escritura[16].

            Para terminar, o autor fala-nos e muito bem, a Palavra de Deus alcança toda a dimensão humana, fazendo dela a sua própria estrutura, isto, é o seu modo de falar, «Eu lhes fiz conhecer o teu nome, e lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado esteja neles, e eu neles esteja» (Jo 17,26), o mesmo se diz no Antigo Testamento: «A Palavra que sai da minha boca não voltará a mim vazia, mas fará a minha vontade, cumprirá a sua missão» (Is 55,11;45,23)[17]



[1] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.17-18.

[2] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.18-19.

[3] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.21-22.

[4] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.30-31.

[5] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.31.

[6] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.39.

[7] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.39-40.

[8] Cf Jo1,14; VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.43.

[9] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.45-48.

[10] Cf Ex4,12; Mt10,20; Lc12,12; VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.49-54.

[11] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.58-65

[12] Cf. Lc21,13-35

[13] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.69-71.

[14] ALVES Herculano, Documentos da Igreja sobre a Bíblia, p43

[15] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.74-75.

[16] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.77-79.

[17] VAZ, Armindo – Palavra Viva, Escritura Poderosa. Prefácio de José Carlos Carvalho. 2ª ed. Lisboa: Universidade Católica, 2020, cap.1, p.99-101.

3ºCap. Fratelli Tutti : "Pense e gerencie um mundo aberto"

 


           

            O homem, como um ser transcendental, revendo-se no próximo nas próprias relações de comunhão, fraternidade, caridade, hospitalidade, assume uma nova consciência da vivência humana. Ele não só abre o espírito ao transcendente, o amor pleno, como também descobre ser a manifestação desse amor em relação ao outro. A hospitalidade e caridade são sinais de fraternidade e de comunhão, e sem esta noção que começa no interior, numa busca que nasce do interior de cada um, este dinamismo de abertura e de união ao outro resplandece a gratuidade de Deus ao Homem. A medida do amor é esta: «Dai e Dar-Se-Vos-á» (Mt7,7)

            O amor como ação no mundo, leva a criar uma sociedade mais fraterna, isto é, mais dada ao próximo, o que pressupõe o outro na mesma medida e proporção em relação a nós próprios (Cf Mt23,8). Nesta medida, o amor ultrapassa a barreira do racismo, etnia, da própria conceção da religião, no fundo, a própria abertura ao amor atinge o íntimo da pessoa como conhecimento essencial da vida de cada um e da própria comunidade.

            O olhar alheio ao próximo pode afastar aquele que pode mais precisar, não só de amor como também de integração e neste sentido, a atitude de indiferença pode tornar-se um sério vírus (daí ter falado que a Fratelli Tutti marca uma certa posição da Igreja no mundo, já fruto e desejo do Concilio Ecuménico Vaticano II). Independentemente das limitações, quer intrínsecas ou extrínsecas à vida da pessoa, esta tem dignidade e quanto mais trabalharmos nessa direção vemos expressa de forma pessoal a manifestação desse amor.

            Os separatismos, gerado pelas diferentes classes sociais, dá-se precisamente pelo problema da globalização que gera conflito de interesses do ponto de vista político, social e económico, deixando de lado a relação humana, o lado mais religioso da relação intra-humana. O mundo foi criado nesta perspetiva de criação e procriação, é um bem de todos.

            A luta de classes sociais a influenciar a mentalidade e postura de cada um frente ao irmão que precisa de ajuda, torna-se e voltasse para o lado mais obscuro da realidade humana vivida hoje, isto é, mais longe do outro “eu”. Portanto, a fraternidade, liberdade e igualdade, são conceitos que se ligam entre si e que só se entendem em mútua ligação com o próximo e nesta medida, a gestão de recursos como ela é feita, em que a discriminação é permanente na sociedade, verifica-se que a partilha e a comunhão fica aquém. O Socialismo cai num individualismo, afasta da sua conceção a liberdade, igualdade, irmandade no sentido mais fraterno.

            Independentemente do estatuto, o importante é olhar com olhos humanos a própria pessoa, no próprio valor do seu ser. Esta é a condição de sobrevivência, não só dos valores enquanto pessoas, mas também da própria pessoa em si, dentro de um quadro daquilo que é SER humano.

            A Fraternidade assume traços concretos na vida e postura das pessoas, ela é verdadeira na medida da entrega, ou seja, é disponível, gratuita. Cada vez mais se vê que o Cristianismo é uma religião voltada ao próximo, na abertura do diálogo, na própria conceção do outro como um outro “eu”, a própria entrega pessoal de si mesma em detrimento e benefício do outro, enfim, uma religião do amor.

            Uma sociedade fraterna e humana é capaz de (pré)ocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmas, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam dentro das suas limitações.

            A condição humana está longe de ser entendida como a condição do amor. É na medida em que me entrego ao próximo que vejo o valor da própria pessoa independentemente da sua condição física, mental ou psíquica. O ser não se esgota, pois, só se entende inserida na parte do todo que é Deus. Os próprios valores morais na base do comportamento humano, vão contribuir para uma nova visão do homem se o olharmos a partir da sua essência, visto antes como um todo na parte ou a parte no todo, significa, portanto, que o homem, é criação divina.

            O valor da solidariedade, como que tudo na vida nasce a partir de casa, a formação, o próprio caráter são as bases, o amor da partilha, respeito mútuo, são a própria fraternidade, o vínculo privilegiado para a transmissão de valores e também um teste à própria fé.

            Servir significa muito mais que prestar auxílio, tanto quanto escutar significa muito mais que ouvir, implica um discernimento, implica um retiro também espiritual e é no silêncio que Deus fala. Acolher e cuidar das fragilidades do próximo, significa passar pela pele do outro que necessita de ajuda e neste sentido, vai fazer parte da história viva e da memória da pessoa. É um exemplo do Cristianismo.

            A dignidade compreende a mulher e homem, no mesmo pé de igualdade no mundo, a condição humana é homem e mulher ao mesmo tempo. É inaceitável do mesmo modo que o local de nascimento ou de residência determine as oportunidades de desenvolvimento para a obtenção de uma vida condigna só porque aquilo que nos é dado de graça, passe a ser gerido pela supremacia das classes. O desenvolvimento deve ser tomado não para uma parte mas para todos, já que a gestão do mundo como criação divina, foi e é para todos, do mesmo modo, que as empresas e tudo aquilo que faz a economia girar, deva ser em detrimento de todos e não centrados no egoísmo individual de cada um.

            Com que direito nos achamos dignos de determinado recurso que se encontra no nosso país ser privado de todos aqueles que precisam por exemplo, água. A violência e a guerra nascem de não discernirem o dom da partilha. A desigualdade cria no irmão que necessita, um fardo, ou dito em muito bom português, uma pedra no sapato e a Fratelli Tutti ensina-nos isto, dar-se sem restrições, mesmo ao jeito de Jesus que se entregou mesmo com a própria vida, incondicionalmente pelo amor de cada um dos seus irmãos, a cura a troco de nada em concreto, pois Jesus sabia que iria viver melhor sabendo que o outro o reconheceria como um irmão que dá tudo de si. É a maneira de Jesus amar, é a maneira de Jesus ensinar que viver é assim, uma Fratelli Tutti.

            A desigualdade não afeta apenas os indivíduos como atinge repercussões maiores nos próprios países, resultando em rivalidades e em novos protocolos, isto é, tomar como partido aquilo que por direito é de todos – egoísmo.

«é possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da Paz e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas» (Papa Francisco).

           

               

Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos; de Leonardo Boff

 

O Autor começa por introduzir o homem numa dinâmica que o supera e que aponta a uma realidade invisível, deixando-o em alerta sobre o modo como o desperta para essa realidade. Foi de facto explicado que o mistério, na sua etimologia, «mystérion», significa guardar segredo, levar a mão à boca diante de algo que nos é manifestado de forma surpreendente, e que não dominamos. No contexto religioso está aplicado e apropriado ao culto, e de certa forma ligado também ao termo «sacramentum», ou seja, a participação do ser humano em rituais que nos remetem para a ação divina tem a ver com realidades, segundo as quais o termo adquire significado novo: anúncio profético de uma ação/evento futuro, prevista por Deus.

            O Sacramento é a combinação inseparável entre o gesto e a Palavra, pois o próprio gesto já fala por si mesmo. As coisas de Deus só se compreendem a partir de dentro; assim, os sacramentos só se percebem quando entramos no seu sentido profundo, isto é, nos mistérios de Deus, e diante da Sua plenitude.

            Numa breve introdução ao livro, o autor pretende sensibilizar o homem para que este possa decifrar e descrever o fenómeno sacramental de olhos atentos e espírito aberto a uma realidade sensível. Já dizia Stº. Agostinho que os Sacramentos são como sinais, realidades através dos quais Deus comunica e nos possibilita à comunhão fraterna, que nos transportam para outra realidade. No fundo, é o modo privilegiado de Deus comunicar, através das suas ações explicitas em Jesus; Sacramento é o sinal sagrado de uma realidade espiritual, de uma realidade invisível; por um lado, há um elemento divino, mais ligado ao sensível, e por outro ao espiritual, ao invisível. Uma coisa é o que se vê, outra é o que não se vê, mas está como que contida como sinal, é o conteúdo da própria fé.

            Encerrando o primeiro capítulo, destaco que, para o autor, a linguagem do sacramento prende-se em três sentidos: não apenas descreve o acontecimento, como também evoca narrando esse acontecimento, contando o milagre, interpelando a pessoa e, por fim, essa linguagem tem carácter performativo, ou seja, capacidade de gerar efeito na vida pessoal, mas também comunitária; a eficácia do Sacramento visa a transformação da própria realidade.

            Já no segundo capitulo, a ideia principal que retiro do texto e do autor, é o próprio significado de Sacramento, mas num contexto como ele fala - Sacramento da caneca, que é exemplo excelente para dizer simplesmente que um objeto pode ser visto por dentro, pelo significado que tem de si e para os outros, sobretudo, no modo como ainda consegue gerar efeito, tornando-se assim significante. No fundo, a caneca fala da história da família que ela sempre acompanhou, na vida e na morte; ela foi entrando cada vez mais na família, isto é, tornou-se um sacramento familiar. Lembro-me, nas aulas, de falarmos de um exemplo parecidíssimo com este – a água: como banho, como lugar da união daquilo que é natureza humana e divina, e lugar onde realiza o pacto de aliança, esse vínculo insolúvel de união esponsal da alma e o criador; tudo acontece e é visto entre a união amorosa de vinculação para sempre. A água assume desde logo outros traços vistos desta forma. Leonardo Boff alerta que o modo de olhar a realidade atualmente, pelo homem moderno, não é necessariamente mau; o importante é abrir-se ao sentido mais profundo, deixando de ser um mero objeto, e passando a ser um símbolo, um sinal que me interpela, que me evoca ao seu verdadeiro significado, ao seu próprio mistério.

            No terceiro capitulo, O Sacramento no Toco de Cigarro, «tudo é sacramento ou pode tornar-se»[1]: como se torna belo que, mesmo a partir de um cigarro, aquilo que se denota como um vicio mundano, de repente tem outro significado por trazer à memória um ente tão querido como o seu pai. Ressalvo mais ainda, que não é meramente o cigarro que é importante, mas o cheiro, o odor que faz lembrar; um pouco como o incenso, também um representante essencial dos rituais litúrgicos. Com efeito, «O Senhor disse a Moisés: “toma aromas: resina, casca odorífera, gálbano, aromas e incenso puro em partes iguais…” (Ex 30,34) Ou seja, invoca-se uma outra realidade, deixa de ser um simples cigarro para se tornar sinal ou símbolo para alguém. O Sacramento é também isto, fazer vir ao de cima o próprio valor da coisa em si, que cria e recria simbolicamente um valor tornando-se sacramental.

            «O Pão lembra algo que não é Pão»[2]; o Sacramento insere dentro de si uma experiência total. De facto, foi o capítulo que achei mais belo por analogia à Eucaristia, o pão que se reparte, e que é Corpo de Cristo. O Sacramento é um símbolo, algo que transparece, participa de dois mundos, a saber, do transcendente (Deus) e do imanente, que se torna presente em si mesmo, uma realidade concreta na vida do homem. O próprio Sacramento dá sentido especial às coisas que parecem vulgares, isto é, um símbolo que liga a realidade humana, com a realidade superior; que liga o homem, na sua imanência, a Deus, na sua transcendência. Para Leonardo Boff, a transparência só se entende fazendo parte de um todo que é a imanência e a transcendência.

            No capítulo que se segue, o autor fala com ímpeto sobre o propósito humano, dizendo que também é o maior sacramento de Deus, e só ganha sentido em pleno se vivermos desta forma, para Deus. Aliás, o autor avança mais ainda, dizendo que, se tudo for visto em perspetiva sob um olhar atento da realidade em Deus, tudo quanto existe é sacramento de Deus, a criação é obra divina. O Sacramento da Vela Natalina mais não é que falar no Natal, e este não se preenche de luzinhas espalhadas pelo mundo, mas antes com a única luz que veio ao mundo assegurar que fôssemos iluminados pela sua vontade e inteligência. A ser assim, o Sacramento possui duas funções, a indicadora e a reveladora: a indicadora, como o nome o sugere, mostra Deus presente nele (no Sacramento), no objeto; já numa função reveladora, o Sacramento revela, comunica, expressa Deus presente. O verdadeiro sentido do Natal é a luz que veio ao mundo, a única que deixa as trevas estremecidas e sem resposta possível, é tanto quanto o conhecimento no meio da ignorância, tanto quanto a verdade no meio do erro.

            No sexto capitulo, o autor fala sobre o percurso da sua vida histórica, e alerta-nos que o passado é parte da vida que se encontra no presente e que dá forças para o futuro; em bom rigor, o passado assume um caráter sacramental, na medida em que se vê a “mão de Deus” nas nossas vidas. O fato de alguém levantar a mão, quando se perguntava quem queria ser padre, muito embora nunca lhe tivesse passado pela cabeça, no seu coração, nada mais de correspondente, verdadeiro e autêntico lhe passara naquele momento, até que esse momento chega sem contar e, enfim, entra no seminário. O intuito do autor é este: tudo avança para que a obra de Deus se realize, e mesmo na hostilidade das nossas vidas, Deus continua a realizar a Sua obra, desde o inicio da humanidade.

            O capítulo que se segue, O Sacramento do Professor Primário, é o capítulo da teologia: o autor fala num senhor professor chamado Mansueto, um idealista, formado em humanidades, bastante culto e dedicado ao ensino. Segundo Leonardo Boff, quando fala em Jesus de Nazaré, fala do professor por excelência, o único que falava como ninguém sobre as verdades divinas, o verdadeiro intérprete da Sagrada Escritura, aquele que faz a haggadah e halakhah. Com efeito, Jesus é o sacramento do encontro por excelência: não só levou uma vida nas bem-aventuranças, como se expressou fielmente com a sua vida a Deus e se entregou num ato filial de Filho ao Pai. N´Ele está presente a forma divina, ou seja, em Jesus se dá a condescendência de Deus, na qual se vê expressamente o ato de entrega por amor, criando no coração do homem a missão discipuladora de que só quem sabe amar, sabe reconhecer no irmão, Jesus em pessoa, Deus enquanto tal.

            No capitulo oitavo, aparece o Sacramento da Casa, que no fundo nos fala dela como um lugar sacramental no que nele contém, isto é, “a porção do mundo que se tornou sacramental, doméstica, humana, onde cada coisa tem o seu lugar e sentido, onde não há nada de estranho”[3], a casa de Deus, a Santa Igreja. No fundo, o que o autor pretende dizer é que a Igreja se torna Sacramento quando vivemos o que ela de melhor oferece, a pessoa de Jesus Cristo, e neste sentido ela é sacramental; torna-se habitável e familiar na medida que congrega todos os homens sem exceção. De seguida, e sem perder o fio condutor deste tema sobre a Casa que é a Igreja, o autor chama a atenção para o ponto central dentro da mesma – a própria comunhão tem a sua teologia: ninguém se sacia sozinho; a fome desaparece porque se comunga em comunidade. Esta era a forma de Jesus amar – sentar-se à mesa com os seus, celebrar ardentemente a Páscoa, entregando-se por todos nós como vítima de expiação dos nossos pecados, estamos perante a Eucaristia.

No nono capitulo, Os Eixos Sacramentais da Vida, Leonard Boff fala dos sete Sacramentos, a saber: a) Batismo – aquele que consagra o verdadeiro nascimento de um Cristão; é por ele que somos purificados do pecado original, e nos tornamos parte da Igreja e do Corpo de Cristo; b) Eucaristia – banquete como participação na própria vida divina; trata-se da última ceia em que Cristo comeu com os seus discípulos na véspera da sua Paixão, e através da qual nos une a Deus Pai; c) Matrimónio – ícone do amor de Deus por nós; Deus criou por amor, do mesmo modo que chama por amor; d) Unção dos enfermos – expressa o poder salvífico de Deus; e) Penitência – articula a experiência do perdão e o encontro do filho com o pai; f) Ordem – consagra as pessoas para o serviço da reconciliação.

            Em que sentido Jesus Cristo é o Autor dos Sacramentos? Entramos assim no décimo capítulo, no qual o autor começa por fazer referência ao Concílio de Trento, o qual afirma que os sete sacramentos foram instituídos por Cristo, e por eles estão atendidas todas as necessidades da vida de um cristão. Todavia, têm também finalidade instrutiva: não só supõem a fé, como também a fortalecem, a alimentam e a expressam por palavras e ações. Estas ações são também denominadas de Sacramentos, pois neles está a própria ação de Jesus, que era o modo privilegiado de ele ser para com o povo; ou seja, é assim que ele se dá a conhecer, e deixa a marca de salvação na pessoa, dá tempo para que esta se aperceba da presença salvífica de Deus.

            Já no décimo primeiro capitulo, gosto particularmente da expressão ex opere operato, ou seja, em virtude do próprio rito realizado, a presença da graça divina no Sacramento não depende da santidade de quem administra o próprio Sacramento, sobretudo quando não é feito no seu devido sentido, isto é, na evocação do Senhor, que deriva da obra realizada por Cristo no seu corpo. Os Sacramentos só são realmente eficazes quando o sinal sacramental é validamente realizado não pela parte do recetor, mas pelo poder e promessa de Deus.

            No décimo segundo capítulo, o autor diz que o Sacramento exige também uma resposta à proposta de Deus; não é inócuo e sem destinatário, espera-se uma atitude. Por conseguinte, é uma atitude que não só confronta a pessoa com o seu todo, como também a transforma, a converte e a interpela para os desígnios de Deus. Esta era uma das finalidades do Concilio de Trento, que apesar de tardio e adiado muitas vezes, foi realizado para marcar uma posição: uma atitude humilde do homem, não só para combater as heresias provocadas pelo protestantismo, mas para se colocar diante de Deus de forma modelar; mais ainda, exige compromisso, engajamento, que era o que significava «Sacramentum» nas primeiras comunidades cristãs.

            Para terminar, nos dois últimos capítulos, é assegurado que o Sacramento procura mais unir que contrapor, procura mais recordar que esquecer, procura tornar-se presente na vida do crente, preparando-o para o futuro. No entanto, há que haver cuidado na forma como o vivemos para não cairmos em “sacramentalismos” (isto é, buscá-lo sem o propósito da conversão), pois só assim se vive o Sacramento e ele se torna eficaz. Os sacramentos remontam a uma memória, celebram uma presença no aqui e agora e, sobretudo, antecipam o futuro no presente. Segundo A Sacramentologia em Proposições Sintéticas, é importante ressalvar que, para entender o Sacramento no sentido pleno, isso apenas é possível no horizonte da fé, no encontro pessoal com Deus, através dos objetos, rituais, gestos e palavras.

 



[1] BOFF, Leonardo; «Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos» as dimensões da sacramentalidade, pp24

[2] BOFF, Leonardo; «Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos» Imanência, Transcendência, Transparência pp29

 

[3] BOFF, Leonardo; «Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos» capítulo VIII, Sacramento da casa, pp48