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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Cristologia - "Dios Hombre"


Podemos compreender a Cristo eclesialmente desde a confissão da sua filiação à confissão da sua divindade, num processo lento de descoberta; todos os acontecimentos relativos a Cristo podem ser entendidos à luz da fé, pela ação do Espírito Santo e da Igreja. Acreditar na divindade de Jesus de forma experienciada, refletida e vivida no seio da comunidade cristã significa tomar consciência do carácter de revelação de Deus em todos os acontecimentos da vida de Cristo, de forma gradual e construtiva, algo que não seria possível sem essa mesma revelação. Deste modo, torna-se possível confessar a divindade de Cristo como expressão de tudo o que Jesus era.
Essa confissão teve já lugar no Novo Testamento, embora de forma indireta, ou seja, Jesus nunca afirmou ser Deus, antes ser alguém enviado por Deus, que d’Ele vinha e a Ele regressaria, para anunciar o Reino de seu Pai. Viveu assim uma existência humana como Filho, que se entregou à morte em completa obediência. Deste modo, Cristo não fez diretamente uma teologia nem uma cristologia; aliás, aquilo que revelou fê-lo mais com a sua pessoa e as suas obras que com palavras. Mostrou, contudo, um grande conhecimento de Deus, e uma atitude para com os homens, que para os seus discípulos equivalia à autoridade, exigência e juízo de Deus. Este conhecimento valeu a Jesus quer o seu reconhecimento como Messias, o Filho de Deus, pelos seus discípulos, quer as acusações de blasfémia da parte daqueles que não conseguiam conceber este tipo de messianismo. Algumas passagens dos Evangelhos atestam esta autoridade e poder de Jesus, equiparados com a de Deus.
No Novo Testamento são três os textos que chamam diretamente Deus a Jesus (Jo 1,1; Jo 20,28; Heb 1,8-9), enquanto outros encerram de forma implícita essa mesma afirmação, de forma mais ou menos clara, e outros ainda contêm afirmações que podem referir-se quer a Deus quer a Cristo.
A utilização da palavra Theós (θεός) para Jesus, bem como o de Kyrios, Logos, ou Filho de Deus, juntamente com o conhecimento de como Ele proclamou a Revelação e Salvação de Deus para os homens, possibilitam a confissão da divindade de Jesus, e da sua ação salvífica na história. Cristo manifestou-se à Igreja com a autoridade e o poder conferido por Ele, tal como já o havia feito durante a sua vida pública; será desse modo que, no final dos tempos, veremos o Filho do Homem. Jesus é, assim, o Logos do princípio, que encarnou, viveu entre os homens, foi crucificado, ressuscitou e está à direita do Pai, de quem esperamos uma segunda vinda no fim dos tempos; é Filho de Deus, Deus com o Pai, Deus de Deus. Esta confissão aparece já na forma de hino na segunda metade do século I, na chamada “poesia asiânica”; no início do século II, Santo Inácio chama explicitamente Deus a Cristo diversas vezes, como na Carta aos Esmirnenses; o mesmo acontece na 2ª Epístola de Clemente.
Contudo, se os textos bíblicos pareciam apresentar a divindade de Cristo com clareza suficiente, apenas mais de dois séculos depois se conseguiu precisar o seu sentido. No século IV, Fotino e Marcelo de Ancira defenderam, através do fontinianismo, que a filiação de Cristo teria um determinado momento de existência, apenas durante o tempo da revelação, e que após esse momento, ou seja, no final dos tempos, o Logos seria reincorporado ao Pai, distinguindo entre o Logos, que era idêntico ao Pai, e Cristo, que era homem, filho de Maria, e nada mais para além disso. Do outro lado, temos a perspetiva que apresentava Cristo como Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, isto é, não apenas um intermediário, mas um mediador entre Deus e os homens; o Filho seria consubstancial ao Pai, encarnando, padecendo e ressuscitando para nossa salvação.
Jesus é Deus porque é Filho de Deus, por geração eterna, e por compartilhar a mesma vida com Ele. Na encarnação continua a ser Filho, mas agora humanamente através da história, Niceia apresenta Jesus como Filho desde o nascimento à ressurreição; a sua existência filial na história revela-nos a sua filiação eterna, e essa filiação eterna por sua vez é o fundamento da existência filial na história. O Novo Testamento apresenta-nos três nascimentos do Filho: o nascimento eterno do Pai, o nascimento temporal de Maria, e o nascimento para uma humanidade glorificada na ressurreição. O Concílio de Niceia recorre à linguagem da Escritura e à linguagem da filosofia, e ambas apresentam a relação entre Deus e Cristo como uma relação pai-filho, embora não seja uma relação como a dos homens com os seus progenitores, porque a sua filiação é divina, infinitamente superior, e para nós um mistério. Essa filiação transcende todos os parâmetros humanos, ao ponto de podermos afirmar que a relação de Jesus com Deus é uma filiação metafísica.
Isto rompe com todos os pressupostos judeus e profanos, levando a pensar a cristologia não apenas quanto à existência e ação de Deus, mas quanto ao seu ser. Existem quatro modelos fundamentais de pensar em Deus: como ser estático (modelo metafísico), como vida e dinamismo (modelo processual), como ser necessariamente histórico (modelo hegeliano), e como dinamismo relacional em si mesmo, que se expressa e comunica livremente na história (modelo cristão). É este último que encontramos no Símbolo de Niceia – um Deus que é vida e comunicação em si, anterior ao mundo e sem necessidade dele. A sua existência é relacional, na autodoação do Pai ao Filho, e de ambos ao Espírito. Pela encarnação de Cristo, e pela efusão do Espírito, Deus dá-Se a si mesmo neles e integra o homem na sua vida trinitária. Deus assume uma experiência de temporalidade e finitude para nos abrir caminho para a vida eterna, livre dos poderes do mal e do mundo. O Concílio de Niceia, ao afirmar a divindade eternidade e consubstancialidade de Cristo com Deus, inicia uma compreensão trinitária que será completada com a mesma lógica para o Espírito Santo, no Concílio de Constantinopla. Deus é comunicação interna (Trindade), e revelação e doação (encarnação); pela graça, o homem ultrapassa a sua finitude, participando de Deus.

A fé parte da análise da relação de Jesus com o Pai (Abbá), até chegar à sua filiação eterna e consubstancialidade com Deus; Jesus é Filho, e Deus verdadeiro. Deus encarnado torna-se caminho de Deus aos homens, e dos homens a Deus; a encarnação, e o nascimento de Maria permitiu a salvação dos homens, porque O Filho de Deus fez-Se nosso irmão, pela misericórdia de Deus.
Deste modo, o cristianismo assenta na convicção que Cristo é Deus e homem, para nossa salvação; θεάυθρωπος, Deus-homem. O termo aparece pela primeira vez com Orígenes; S. Gregório Nazianzeno explica que com esse termo dá-se uma “síntese” entre Deus e o homem, sem diluir a sua diferença nem fazer surgir uma realidade intermédia entre ambos. Esta união, longe da linha dos profetas e homens divinos, é uma novidade, pois dela resulta um sujeito pessoal único, distinto da união entre Deus e Cristo. Este sujeito único recebeu a sua humanidade por Maria, que por isso é a Theotokos, a Mãe de Deus; para Cristo, Filho eterno do Pai e Filho encarnado de Maria, aquilo que recebe de ambos é igualmente importante, pois é consubstancial ao Pai por geração eterna, e a Maria pela sua conformação geradora e educadora. É o Verbo encarnado, o Deus-homem, com operações teândricas; isto difere das ideias do monofisismo, do nestorianismo, e de princípios platónicos pagãos. A afirmação de Deus-homem antecede uma fórmula posterior: unidade de pessoa e dualidade de naturezas.
A encarnação é um ato particular, que resulta de uma iniciativa e liberdade divinas; não é algo metafísico e universal, como se Cristo fosse apenas uma manifestação daquilo que já acontecia com todos os homens – serem uma manifestação de Deus, ou d’Ele serem irmãos metafisicamente. Cristo encarnou para ser a porta, o caminho, que aproxima Deus dos homens, tornando compreensível Aquele que, por ser longínquo e transcendente , nos era incompreensível. A encarnação é, portanto, um ato particular, único e irrepetível, e não um mito universal; revela-nos o amor de Deus pelo homem e a sua convivência com ele. Deus não precisava de encarnar, mas, ao fazê-lo, mostra-nos a verdade do seu ser: comunicação, dom, relação.
A encarnação parece ser conveniente e necessária, pois nela os homens encontram aquilo com que sempre haviam sonhado: ser como Deus, ou Deus ser como os homens, e que ambos não fossem antagonistas, mas fraternos. É isso que como gesto de amor para a sua criatura inicia a revelação de Deus no Antigo Testamento e consuma Jesus no Novo Testamento. A fé cristã apresenta-nos um Deus feito homem para nos divinizar, pela participação na vida de Jesus, o Filho, pela ação do Espírito Santo. Assim, o cristianismo funda-se na encarnação de Deus, na eucaristia da Igreja e na ressurreição da nossa carne; é positividade, história, pessoa, e não mera ideia, mito ou ideologia. A fé, a oração, a celebração comunitária, a moral evangélica, a obediência à autoridade apostólica, garantem um cristianismo cristão.
A encarnação é um mistério, que ocorre de maneira inefável e incompreensível. Acolhe-se em obediência à revelação de Cristo e à luz do Espírito Santo, sem as quais não é pensável nem exigível, e depois das quais não é demonstrável como necessária. A reflexão teológica mostra que a encarnação não é contraditória, já que prolonga até ao máximo a criação como a doação que Deus faz ao outro do seu ser-razão-liberdade-autonomia. Cristo é a expressão máxima da liberdade criadora e da liberdade criada, e assim Se converte em norma para entender todas as outras relações entre o Criador e a criatura. É a expressão perfeita do que Deus dá e do que o homem recebe; é o cânone de toda a perfeição e liberdade, de toda a relação do homem com Deus. O “homo dominicus” é, assim, na sua existência no mundo, a medida de todo o homem, uma vez que, pelo seu Espírito, nos dá o poder para ser homens novos semelhantes a Ele.