Podemos compreender a Cristo eclesialmente desde a
confissão da sua filiação à confissão da sua divindade, num processo lento de
descoberta; todos os acontecimentos relativos a Cristo podem ser entendidos à
luz da fé, pela ação do Espírito Santo e da Igreja. Acreditar na divindade de
Jesus de forma experienciada, refletida e vivida no seio da comunidade cristã
significa tomar consciência do carácter de revelação de Deus em todos os
acontecimentos da vida de Cristo, de forma gradual e construtiva, algo que não
seria possível sem essa mesma revelação. Deste modo, torna-se possível
confessar a divindade de Cristo como expressão de tudo o que Jesus era.
Essa confissão teve já lugar no Novo Testamento, embora de
forma indireta, ou seja, Jesus nunca afirmou ser Deus, antes ser alguém enviado
por Deus, que d’Ele vinha e a Ele regressaria, para anunciar o Reino de seu
Pai. Viveu assim uma existência humana como Filho, que se entregou à morte em
completa obediência. Deste modo, Cristo não fez diretamente uma teologia nem
uma cristologia; aliás, aquilo que revelou fê-lo mais com a sua pessoa e as
suas obras que com palavras. Mostrou, contudo, um grande conhecimento de Deus,
e uma atitude para com os homens, que para os seus discípulos equivalia à
autoridade, exigência e juízo de Deus. Este conhecimento valeu a Jesus quer o
seu reconhecimento como Messias, o Filho de Deus, pelos seus discípulos, quer
as acusações de blasfémia da parte daqueles que não conseguiam conceber este
tipo de messianismo. Algumas passagens dos Evangelhos atestam esta autoridade e
poder de Jesus, equiparados com a de Deus.
No Novo Testamento são três os textos que chamam
diretamente Deus a Jesus (Jo 1,1; Jo 20,28; Heb 1,8-9), enquanto outros
encerram de forma implícita essa mesma afirmação, de forma mais ou menos clara,
e outros ainda contêm afirmações que podem referir-se quer a Deus quer a
Cristo.
A utilização da palavra Theós (θεός) para Jesus, bem
como o de Kyrios, Logos, ou Filho de Deus, juntamente com o
conhecimento de como Ele proclamou a Revelação e Salvação de Deus para os
homens, possibilitam a confissão da divindade de Jesus, e da sua ação salvífica
na história. Cristo manifestou-se à Igreja com a autoridade e o poder conferido
por Ele, tal como já o havia feito durante a sua vida pública; será desse modo
que, no final dos tempos, veremos o Filho do Homem. Jesus é, assim, o Logos do
princípio, que encarnou, viveu entre os homens, foi crucificado, ressuscitou e
está à direita do Pai, de quem esperamos uma segunda vinda no fim dos tempos; é
Filho de Deus, Deus com o Pai, Deus de Deus. Esta confissão aparece já na forma
de hino na segunda metade do século I, na chamada “poesia asiânica”; no início
do século II, Santo Inácio chama explicitamente Deus a Cristo diversas vezes,
como na Carta aos Esmirnenses; o mesmo acontece na 2ª Epístola de Clemente.
Contudo, se os textos bíblicos pareciam apresentar a
divindade de Cristo com clareza suficiente, apenas mais de dois séculos depois
se conseguiu precisar o seu sentido. No século IV, Fotino e Marcelo de Ancira
defenderam, através do fontinianismo, que a filiação de Cristo teria um
determinado momento de existência, apenas durante o tempo da revelação, e que
após esse momento, ou seja, no final dos tempos, o Logos seria reincorporado ao
Pai, distinguindo entre o Logos, que era idêntico ao Pai, e Cristo, que era
homem, filho de Maria, e nada mais para além disso. Do outro lado, temos a
perspetiva que apresentava Cristo como Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, isto
é, não apenas um intermediário, mas um mediador entre Deus e os homens; o Filho
seria consubstancial ao Pai, encarnando, padecendo e ressuscitando para nossa
salvação.
Jesus é Deus porque é Filho de Deus, por geração eterna, e
por compartilhar a mesma vida com Ele. Na encarnação continua a ser Filho, mas
agora humanamente através da história, Niceia apresenta Jesus como Filho desde
o nascimento à ressurreição; a sua existência filial na história revela-nos a
sua filiação eterna, e essa filiação eterna por sua vez é o fundamento da
existência filial na história. O Novo Testamento apresenta-nos três nascimentos
do Filho: o nascimento eterno do Pai, o nascimento temporal de Maria, e o
nascimento para uma humanidade glorificada na ressurreição. O Concílio de
Niceia recorre à linguagem da Escritura e à linguagem da filosofia, e ambas
apresentam a relação entre Deus e Cristo como uma relação pai-filho, embora não
seja uma relação como a dos homens com os seus progenitores, porque a sua
filiação é divina, infinitamente superior, e para nós um mistério. Essa
filiação transcende todos os parâmetros humanos, ao ponto de podermos afirmar
que a relação de Jesus com Deus é uma filiação metafísica.
Isto rompe com todos os pressupostos judeus e profanos,
levando a pensar a cristologia não apenas quanto à existência e ação de Deus,
mas quanto ao seu ser. Existem quatro modelos fundamentais de pensar em Deus:
como ser estático (modelo metafísico), como vida e dinamismo (modelo
processual), como ser necessariamente histórico (modelo hegeliano), e como
dinamismo relacional em si mesmo, que se expressa e comunica livremente na
história (modelo cristão). É este último que encontramos no Símbolo de Niceia –
um Deus que é vida e comunicação em si, anterior ao mundo e sem necessidade
dele. A sua existência é relacional, na autodoação do Pai ao Filho, e de ambos
ao Espírito. Pela encarnação de Cristo, e pela efusão do Espírito, Deus dá-Se a
si mesmo neles e integra o homem na sua vida trinitária. Deus assume uma
experiência de temporalidade e finitude para nos abrir caminho para a vida
eterna, livre dos poderes do mal e do mundo. O Concílio de Niceia, ao afirmar a
divindade eternidade e consubstancialidade de Cristo com Deus, inicia uma
compreensão trinitária que será completada com a mesma lógica para o Espírito
Santo, no Concílio de Constantinopla. Deus é comunicação interna (Trindade), e
revelação e doação (encarnação); pela graça, o homem ultrapassa a sua finitude,
participando de Deus.
A fé parte da análise da relação de Jesus com o Pai (Abbá),
até chegar à sua filiação eterna e consubstancialidade com Deus; Jesus é Filho,
e Deus verdadeiro. Deus encarnado torna-se caminho de Deus aos homens, e dos
homens a Deus; a encarnação, e o nascimento de Maria permitiu a salvação dos
homens, porque O Filho de Deus fez-Se nosso irmão, pela misericórdia de Deus.
Deste modo, o cristianismo assenta na convicção que Cristo
é Deus e homem, para nossa salvação; θεάυθρωπος, Deus-homem. O termo aparece
pela primeira vez com Orígenes; S. Gregório Nazianzeno explica que com esse
termo dá-se uma “síntese” entre Deus e o homem, sem diluir a sua diferença nem
fazer surgir uma realidade intermédia entre ambos. Esta união, longe da linha
dos profetas e homens divinos, é uma novidade, pois dela resulta um sujeito
pessoal único, distinto da união entre Deus e Cristo. Este sujeito único
recebeu a sua humanidade por Maria, que por isso é a Theotokos, a Mãe de
Deus; para Cristo, Filho eterno do Pai e Filho encarnado de Maria, aquilo que
recebe de ambos é igualmente importante, pois é consubstancial ao Pai por
geração eterna, e a Maria pela sua conformação geradora e educadora. É o Verbo
encarnado, o Deus-homem, com operações teândricas; isto difere das ideias do
monofisismo, do nestorianismo, e de princípios platónicos pagãos. A afirmação
de Deus-homem antecede uma fórmula posterior: unidade de pessoa e dualidade de
naturezas.
A encarnação é um ato particular, que resulta de uma
iniciativa e liberdade divinas; não é algo metafísico e universal, como se
Cristo fosse apenas uma manifestação daquilo que já acontecia com todos os
homens – serem uma manifestação de Deus, ou d’Ele serem irmãos metafisicamente.
Cristo encarnou para ser a porta, o caminho, que aproxima Deus dos homens,
tornando compreensível Aquele que, por ser longínquo e transcendente , nos era
incompreensível. A encarnação é, portanto, um ato particular, único e
irrepetível, e não um mito universal; revela-nos o amor de Deus pelo
homem e a sua convivência com ele. Deus não precisava de encarnar, mas, ao
fazê-lo, mostra-nos a verdade do seu ser: comunicação, dom, relação.
A encarnação parece ser conveniente e necessária, pois nela
os homens encontram aquilo com que sempre haviam sonhado: ser como Deus, ou
Deus ser como os homens, e que ambos não fossem antagonistas, mas fraternos. É
isso que como gesto de amor para a sua criatura inicia a revelação de Deus no
Antigo Testamento e consuma Jesus no Novo Testamento. A fé cristã apresenta-nos
um Deus feito homem para nos divinizar, pela participação na vida de Jesus, o
Filho, pela ação do Espírito Santo. Assim, o cristianismo funda-se na
encarnação de Deus, na eucaristia da Igreja e na ressurreição da nossa carne; é
positividade, história, pessoa, e não mera ideia, mito ou ideologia. A fé, a
oração, a celebração comunitária, a moral evangélica, a obediência à autoridade
apostólica, garantem um cristianismo cristão.
A encarnação é um mistério, que ocorre de maneira inefável
e incompreensível. Acolhe-se em obediência à revelação de Cristo e à luz do
Espírito Santo, sem as quais não é pensável nem exigível, e depois das quais
não é demonstrável como necessária. A reflexão teológica mostra que a
encarnação não é contraditória, já que prolonga até ao máximo a criação como a
doação que Deus faz ao outro do seu ser-razão-liberdade-autonomia. Cristo é a
expressão máxima da liberdade criadora e da liberdade criada, e assim Se
converte em norma para entender todas as outras relações entre o Criador e a
criatura. É a expressão perfeita do que Deus dá e do que o homem recebe; é o
cânone de toda a perfeição e liberdade, de toda a relação do homem com Deus. O “homo
dominicus” é, assim, na sua existência no mundo, a medida de todo o homem,
uma vez que, pelo seu Espírito, nos dá o poder para ser homens novos
semelhantes a Ele.