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terça-feira, 19 de maio de 2020

Arqui-Cristologia de Michel Henry

    O cristianismo é uma religião (conjunto de práticas), que envolve “sacramentos” e uma ética, unindo o homem a Deus, e transformando-o, de uma forma completamente estranha à ciência e ao conhecimento. O cristianismo oferece uma proposta conceptual, que desde o seu início foi sofrendo influências das diversas abordagens filosóficas gregas. A cristologia ganhou autonomia (relativa) na época moderna, entre os românticos, com a interpretação especulativa de uma espécie de Arqui-Cristologia contida nas Escrituras. No Novo Testamento encontramos textos de naturezas diferentes, alguns relatando acontecimentos ligados à vida de Cristo, de teor histórico, mas também catequético, focando na relação entre o homem e Deus, numa ética em relação com uma teologia; noutros, porém, temos Cristo a falar dele mesmo, num aparente alheamento em relação aos homens. É este discurso de Cristo sobre si mesmo que constitui a Arqui-Cristologia; os fragmentos deste discurso encontram-se dispersos pelos Evangelhos, sobretudo no de João, levando a uma dificuldade da sua leitura. As palavras desta Arqui-Cristologia chegam até nós porque João foi o primeiro a entendê-las, a cumpri-las, e a relatá-las; estando próximo de Cristo, pelo seu génio e pureza de coração, foi o primeiro a saber que Jesus é o Cristo, filho de Deus. Assim esses ditos de Cristo chegaram até nós inalterados. A oração sacerdotal da entrega de Cristo ao Pai daqueles que o Pai lhe confiou, só é possível conhecê-lo porque Cristo o transmitiu a João para que chegasse até nós. O relato vivo da paixão e morte de Cristo por João é carregado de emoção e dramatismo, pois ocorre no contexto da primeira perseguição à comunidade cristã; permite-nos justapor uma teologia intemporal, pois o mesmo homem que seguiu Cristo, e a quem este revelou o segredo da sua missão, conseguiu transmitir tudo isto na primeira pessoa, de forma inteligível. É o próprio Cristo quem fala da sua natureza divina através dos Evangelhos, assunto que é discutido nas sinagogas; as ipsissima verba de Cristo, que afirmam a sua divindade, são motivo da sua condenação, e não algo que surge depois desta. As palavras pelas quais Cristo se define a si mesmo são uma espécie de Arqui-Cristologia, que é autêntica, nas palavras pronunciadas, nos acontecimentos, nas testemunhas, e na sua transmissão derivada de uma compreensão prévia; contudo, apesar de autêntica, não podemos por si só afirmar a sua veracidade, pois os feitos poderiam ser autênticos, e o dizer de Cristo enganador. Os contemporâneos passaram por esta experiência, ou seja, ao ouvirem diretamente as palavras de Jesus, não questionaram a sua autenticidade, pois viram que era Ele quem as proferia, mas não acreditavam nelas. Assim, Cristo teve que fazer transitar uma Arqui-Cristologia da autenticidade para uma Arqui-Cristologia da verdade, através do seu discurso, mas sobretudo ao afirmar que ele é a Verdade, isto é, uma condição da sua pessoa que torna verdadeiras as suas palavras. Os prodígios de Jesus, e os seus atos contrários à Lei, inquietam os teólogos das sinagogas, que se perguntam quem é e de onde é Jesus, e com que direito faz tais coisas; e Cristo responde que é de Deus que saiu e que veio, ou seja, que não veio do mundo; não é filho de David, mesmo sendo seu descendente, pois veio antes dele. Cristo, tal como Deus, é Vida, um processo sem o qual nenhuma vida é possível, numa ipseidade sem a qual nenhuma prova de si mesmo se produz; Deus engendra-Se como Cristo. Deste modo, o processo de autogeração da Vida é um processo de autorrevelação – Deus engendra-Se como Verbo. O Pai prova-Se no Filho, e o Filho no Pai, sendo interiores um ao outro, e revelando-Se um no outro. O testemunho de si mesmo, que parece contrário à Lei, é central para uma Arqui-Cristologia da Verdade. Cristo é a Verdade, e por isso só pode testemunhar dele mesmo que é o Messias, melhor que qualquer outra pessoa; uma verdade insólita e abissal, uma verdade que não é “universal” e “impessoal”, mas uma Verdade que é um Eu particular, que é o de Cristo – Verdade e Vida. João transmitiu esta Verdade, o Verbo que Se revela e que revela Deus, do qual Ele é autorrevelação. Cristo revela-Se na autorrevelação de Deus; nesse sentido, quem dá verdadeiramente testemunho não é Cristo, mas Deus, que enviou o seu Filho, e Se revelou nele. E o Filho, por sua vez, sabe que é prova da Vida do Pai no seu Si. Apenas o Filho pode testemunhar o Pai como Pai, do mesmo modo que apenas o Pai pode testemunhar o Filho como Filho. Cristo dá testemunho sobre Ele mesmo provando o Pai como se autogerando nele, e provando a sua vinda na Vida como a vinda da Vida em si mesma, como autorrevelação dela própria. Esta interioridade recíproca com o Pai, porém, não é visível aos homens, que apenas veem em Jesus outro como eles; isto requer que eles acreditem, mas ao mesmo tempo eleva-os, fazendo com que eles deixem de se compreender a partir do mundo, para passarem a compreender-se a partir de Deus, como seus filhos adotivos, nascidos da Vida, que terão um lugar no Reino. E isto só é possível por intermédio de Cristo; todos se tornam Filhos no Filho. Assim, a Arqui-Cristologia da Verdade estende-se a todos os homens, fazendo de todo o cristão imagem de Cristo. O Si que se reporta a si mesmo não pode ser apreciado na Verdade do mundo, mas na da Vida, provando-se continuamente de forma afetiva. Em suma, a Arqui-Cristologia é uma Cristologia seminal, que não se prova no mundo nem no pensamento, mas em Cristo, em Si mesmo, na sua união com o Pai e com os homens; Cristo é o Logos da Verdade e da Vida. Esta Vida apenas não se pode provar nos “homens do mundo”, mas sim nos cristãos, através de uma ética e de uma teologia, e nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia.